Depressão: patologia ética?
A depressão tem se tornado um mal maior do que poderíamos esperar. Aliás, o mundo como um todo, dizia uma pessoa, tem se tornado um excesso maior do que supôs nossa vã filosofia. Vivemos num mundo de excessos. Somos excedentes? Nós mesmos nos tornamos um excesso ao excesso que é o próprio mundo? Na verdade, o que podemos esperar da vida?
A compulsividade desenfreada nunca conheceu tanto incentivo mercadológico quanto o que temos visto em nossos consultórios. A constatação? Sujeitos cada vez mais deprimidos, apáticos diante de um mundo que parece que os vai engolir. Há uma selvageria nesta sociedade do espetáculo e dos efeitos especiais que acabam tendo como efeito sujeitos imobilizados diante de suas angústias, suas dores de existir, suas fobias enclausurantes. E, pior. Não sabem dar uma resposta a tudo isto pelo simples fato de acharem que podem dar resposta a tudo. Com a internet o mundo se abriu ao infinito, mas paradoxalmente, tivemos a desilução da finitude o que leva alguns sujeitos a constatarem pálidos: então o mundo é só isto? Outro estranho paradoxo que desta vez vem da Bíblia. Lá no Gênesis está escrito que os olhos do homem se arregalaram ao provar da árvore do conhecimento. Pois não é exatamente isto que estamos vivendo agora? A constatação (ilusória) de que podemos saber tudo? Há um excesso de informação para pouquíssima formação.
Os corpos tornaram-se Torres de Babel. Constantemente inacabados, continuamente querendo chegar à perfeição e prodigiosamente fracassando quando estavam no auge de quase poder alcançá-lo quer seja através do empuxo ao gozo desenfreado dos exercícios in extremis, quer seja pela introdução de próteses. Freud escreveu em o Mal-Estar na Civilização que o homem é um Deus de prótese. Ele, em 1930, previa a enxurrada de artifícios (botox, metracrilex ou substâncias tóxicas) que tentam manter os sujeitos no Jardim das Delícias eternamente.
Lacan nos diz que quando se atende a demanda, esmaga-se o desejo. Ele dizia isto sobre a relação analista-analisando. Mas o que vemos hoje é um mercado que está apto a atender e a suprir a qualquer demanda: das drogas ilícitas às lícitas, do fast food à delicatessen mais exótica, da igreja mais ortodoxa ao culto pagão, ou seja, há uma suplência para toda a falta. E é isto que produz sujeitos deprimidos: não há mais lugar para a falta e, portanto, para o desejo. Se não há lugar para o desejo, pela promessa de que tudo pode ser suprimido – também pelos comprimidos -, então o que há é uma falta da falta. Pura angústia. Fobia desencadeada que prende a todos em suas ilhas artificiais. Ninguém mais pode ter a desculpa de falhar, pois você pode conseguir tudo. É o imperativo americano do if you want, you can! Se você falhar, a culpa é sua. Mas ninguém quer se responsabilizar por nada. Os corpos das Torres de Babel de que eu dizia? Pois não há dúvidas de um processo crônico civilizatório dos sujeitos quererem continuar eternamente adolescentes, isto é, achando que podem ainda continuar irresponsáveis. Não há responsabilidade porque não há castigo. E não há castigo porque a lei do pai está em franca decadência. As hierarquias foram para o espaço. Talvez estejam nadando por aqui no cyberespaço, mas de fato e de direito? Esta condição parece ter chegado ao fim. A função paterna está capenga e não acredito haver substitutos. Quando os detectamos podemos pensar que ali talvez esteja uma impostura em curso.
Há um imperativo categórico que visa com que cada um deva suplementar-se de tudo, endividando-se se preciso for. Aliás, o binômio dívida-culpa nunca esteve tão presente. Mas é uma culpa que não faz com que os sujeitos repensem as suas atitudes e as refaçam de outro modo. Há um excesso de atos, de passagens ao ato e, em contrapartida, uma diminuição exacerbada do estatuto do simbólico: das palavras que possuam relevância, eficácia e peso. Não, não é uma leveza. Antes. O que há é uma fragilidade capilar da palavra. Nenhuma parece se sustentar. Nenhuma parece ter a dignidade ética para bem dizer uma vida. Há uma crise da linguagem que se passa através das palavras. Em nossa época as palavras tornaram-se extremamente frágeis, inconsistentes, são desditas, apresentam-se disfarçadas, escamoteadas, vazias, enlameadas, inúteis, incapazes de se tornar um significante que ordene um discurso. Não que elas não possuíssem estas e outras características em outras épocas, mas o que parece é que não há outra opção. Há uma sensação de que se pode dizer qualquer coisa, pois tudo pode caber. Mesmo aqueles que possuem uma representatividade (principalmente estes) no social, quando dizem “merda”, o povo parece sorrir mais das charges do que se lamentar ou, melhor, do que dar uma resposta que seja constitutiva de um bem dizer.
Se antes, em função da neurose, os sujeitos tornavam-se covardes e recuavam diante de seus atos, o que acontece hoje não é uma postura ética. Muito pelo contrário. A certeza da impunidade (sem o “p” de político, ou de parlamentar, vira ‘imunidade’) não os livrou da covardia moral, mas criou uma legião de tentáculos que produzem milhares de atos impensados que são impossíveis de serem contidos. Então, descobriu-se, para tristeza e espanto de todos, que é a própria lei que está em depressão.
Mesmo assim, ou apesar de tudo isto, a psicanálise em seu olhar sobre a polis, aposta, desde Freud, que a saída ética para o sujeito (ética do desejo), seja através da palavra. Resgatar a vida é, portanto, resgatar uma outra dimensão da palavra em seu bem dizer.