segunda-feira, 1 de março de 2010

Sobre o ensino e a transmissão da psicanálise


"A fala com efeito, é um dom de linguagem, e a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo." J. Lacan - Escritos
"É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos é que começamos a saber." Clarice Lispector - Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

Em psicanálise você não estuda e aprende. Em psicanálise você estuda, pensa, questiona e transmite. E sua quota de quase-saber vem daí. Daquilo que você ensinando, transmite a partir de um saber não sabido. O inconsciente é estabelecido não só como tendo uma estrutura de ficção, mas de uma linguagem que não se diz-toda: o real. Lacan em seu seminário sobre a angústia, chama de sintoma aquilo que vem do real. Portanto, há algo de inominável no real e, também, há algo de inominável no sintoma. Como se no próprio sintoma houve, por analogia ao sonho, também um umbigo. O real não se diz. Mas se transmite a partir dele. Então, como isso se operacionaliza? É o próprio Lacan quem nos orienta logo no início do seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (livro11) que é preciso tratar o real pelo simbólico (p.14). Pois é falando que a cadeia de significantes se articula em torno do vazio. É através dos intervalos da fala (É a regra técnica fundamental de Freud), suas reticências, seus hiatos que o sujeito pode dizer mais-além das aparências inibitórias do imaginário.
Há alguns anos constato a voracidade das terapias que prometem uma espécie da salvo conduto contra a neurose ou contra a loucura. São terapias centradas no ganho rápido, fácil e que obedecem à nova lei do mercado: a globalização da saúde mental. Algo que, com fina ironia, Machado de Assis escreveu em "O alienista". As terapias comportamentais são uma espécie de mortificação do pensamento. Não é à toa que me refiro ao alienista, já que promovem uma alienação do sujeito e sua faculdade de refletir, questionar. A vida hoje é uma consequência desenfreada de atos sem pensamento, como se fôssemos autômatos. Este modo de agir tem levado os sujeitos a posicionamentos perversos na vida coletiva. O ato sem pensar refere-se a uma razão cínica: o sujeito sabe muito bem o que ele está fazendo, mas mesmo assim continua fazendo. É um sujeito patológico que não quer se responsabilizar pelos seus atos. E quando um sujeito não se responsabiliza um Outro responde em seu lugar. Em nossa constituição o louco, a criança e o índio são garantidos com a prerrogativa de não precisarem responder pelos seus atos. Mas, e quando o sujeito comum, com sua neurose comum, possui um empuxo ao ato e pratica deliberadamente sem que pense nas consequências? Querer terapeuticamente apenas um ato sem pensamento, simplesmente como um reflexo condicionado (pelo Outro), é manter o sujeito nesta alienação. É criar a existência de sujeitos-googles. Sujeitos que apenas sabem muito bem apertar um botão e fazer emergir do outro lado, sem um mínimo de esforço do pensamento, milhares de informações sem nenhuma formação. Na verdade há que se esquecer de algo, como diz Clarice, um não-saber para que se possa começar a saber. E não tentar locupletar o eu com um expansionismo galáctico de gadgets que visem saciar a sede alienante e consumista em se querer todo.
A psicanálise ao colocar um ponto de basta diante do gozo fundamentalista do Outro, não é que pretenda querer ir contra a globalização, mas com isso permitir que o sujeito saiba ao menos de seus limites. Saber de seus limites é criar condições de possibilidades a respeito de seu desejo.
Se a psicanálise acentua a questão da angústia não-sem o desejo do Outro, é porque ela aposta que um sujeito do inconsciente possa advir e, com isso, uma outra formação poder surgir: as formações do inconsciente. Formações rateadas, não calculadas, amealhadas pelos atos falhos, inconclusas nas vacilações e nas atemporalizações da precariedade da fala. Mas, isto é o sujeito! Isto é o sujeito em sua diferença radical em seu desejo. Isto é o sujeito em sua diferença subjetiva e não um sujeito mortificado pela uniformidade globalizante. O sujeito da fala é o sujeito que, através do seu desejo possa bem-dizer sobre sua vida. O estilo próprio de cada um, que Lacan tanto preconizava, é apenas o que cada um, a seu modo, com sua travessia e percurso de análise pode transmitir de seu inconsciente para um outro. Por isso a transmissão da psicanálise é única, é um a um, um por um. Não há a possibilidade da massificação reprodutiva. Quem assim o faz, desertifica-se em seu afastamento radical do ensino de Freud e Lacan.
"O que é ensinar, quando se trata justamente de ensinar o que há por ensinar não apenas a quem não sabe, mas a quem não pode saber?" (Lacan, A angústia, livro 10 - p.26). O saber, não é qualquer saber, mas um saber que é constituído num trabalho de elaboração da análise.
Então, fica a questão: é possível transmitir, ensinar a psicanálise àquele que não passou por uma análise? Em outros termos: é possível uma psicanálise apenas teórica? Que alcance ela teria?

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Adorei o texto pai! Fico até com vontade de, quem sabe um dia, vir a estudar um pouquinho de psicanálise, a qual aliás liga-se, e muito, ao direito penal que eu tanto gosto. Quero mais textos sobre o tema! Bjs!

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  3. Carlos,

    Dessa vez, eu estou passando por aqui, tão somente para lhe dizer que eu ficaria muito feliz se você fosse comer uma fatia de bolo, comigo, em meu blog...

    Estou lhe aguardando.

    Beijos,
    Ana Lúcia.

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  4. Importantes as questões que você coloca, Carlos. Com uma ou duas discordâncias pontuais, assino embaixo. Essa (a)pedagogia dos limites é fundamental, especialmente enquanto exercício de parcialização da neurose.

    Você conhece o trabalho do Magno?

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