A Ética do
Desejo e a Covardia Moral
Carlos
Eduardo Leal
Resumo
O objetivo
deste trabalho é pensar como o sujeito pode se deixar subsumir pelas
intempéries da vida que ocasionam a angústia. A culpa como correlato da
angústia é o que leva o ser humano a ter, não um comportamento ético nas suas
ações, mas sim justo o contrário que é a covardia moral. A angústia do ponto de
vista clínico, pode ser um bom balizador para situarmos no mundo moderno, a
ética do desejo na vida em comum.
Resumé
Cet article a
le but de penser comment le sujet peut se laisser anéanti par les conditions,
le plus lourdes, de la vie qui font produire l’ angoisse. La culpe comme
correlatif de l’ angoisse, c’ est ce qui méne l’ être humain a avoir, pas une
coduite éthique dans ses actions, mais, par contre, elle fait le sujet vivre la
lâcheté moral. L’ angoisse, du point de vue clínique, peut être un baliseur de
bonne qualité, pour situer dans le monde moderne, l’ éthique du désir dans la
vie cotidienne.
Tudo o que se procura, será descoberto.
Édipo Rei - Sófocles
Encruzilhada a céu
aberto
Na
encruzilhada de uma decisão, frente a uma escolha sempre presente, sempre
recomeçada, a vacilação do sujeito põe em causa a constelação do seu desejo.
Cometa alucinado a cruzar os céus do imaginário aflitivo e pessoal de cada um,
o desejo inconsciente deixa como rastro na poeira de sua cauda, a insatisfação
pela sua não realização. O brilho fálico do desejo, vislumbrado na negritude do
firmamento, impõe ao sujeito uma espécie de obrigatoriedade em deter o que não
se captura; o infinito deslizar metonímico deste cometa-desejo.
Em sua
laboriosa fantasia o neurótico sonha iludido em realizá-la. O desejo
inconsciente irrompe como um clarão que parece profanar o que até então era
cegueira provocada pela opacidade da própria vida. Telescópio em punho,
alinhado com a aparente previsibilidade do surgimento do desejo, ledo engano
pois este surge de onde o sujeito menos espera e, invariavelmente, ele é tomado
pelo efeito de surpresa, ou como Freud falou sobre o caso Emma, ´a emoção do
susto`.[1]
A imprevisibilidade do advento do desejo é correlata à abertura na vida humana
da dimensão sexual, que se traduz como uma experiência daquilo que não cessa de
não se inscrever: o real traumático.
Alinhado com
as esperanças nutridas através das galáxias da linguagem, o sujeito ilude-se ao
pensar que poderá sair em sua vida da posição de impossibilidade - como é o
caso da neurose obsessiva - ou da posição de insatisfação - como é o caso da
histeria - bastando para isto que ele realize e satisfaça o seu desejo. A
esperança aqui se traduz em temor pela incerteza diante do futuro. A promessa
de felicidade aparece como o sol que surge no horizonte das incertezas depois
de uma noite de trevas. Só que na noite, tinha-se muitas estrelas e não se
sabia qual seguir. Agora, durante o luzeiro, apenas uma para projetar a
esperança porém, com a condição de não olharmos para ela, ou melhor dizendo,
para ele, o sol. Esta parece ser a fonte
dos enganos na vida do homem comum. Manter a esperança sobre algo que na
verdade ele jamais poderá olhá-la de frente sob a pena da cegueira, tal como
Édipo, Creonte e outros que ousaram saber toda a verdade.
Na
encruzilhada de uma decisão, atualmente apela-se aos astros com a falsa
esperança de evitar o encontro com a tragédia do desejo. No mapa astral,
pode-se olhar os astros sem o temor de que sejam por eles cegados. Porém, a
verdadeira cegueira advém através do encobrimento da palavra que ao privilegiar
o destino, retira do sujeito a responsabilidade sobre o seu desejo. Quando
entregamos ao Outro o fardo da nossa causa é bem provável que encontremos o
alívio, com um preço a pagar por isto que é o de não termos acesso à verdade.[2]
O desejo não
pode se consumar numa tragédia. A dimensão trágica é quando dele não queremos
saber e supomos que poderemos viver nesta insciência. O alerta dado pelo
inconsciente tem a serventia para que possamos dele desfrutar e não para que
fiquemos atrelados à um usufruto, este gozo de puro sofrimento.
O analista é
aquele que vive o presente no passado e traz o passado para o presente. Tal
como as estrelas, cujo brilho que nos chega de um passado longínquo atualizado
no presente. O céu do analisante é seu inconsciente onde existem alguns buracos
negros através dos quais até a luz é puxada para dentro. Dentro desta alegoria
espacial, podemos também dizer que a interpretação analítica é um verdadeiro
meteoro cuja cauda deixa rastros na vida do sujeito. Ou ainda, que a
interpretação é uma estrela cadente que por sua velocidade e clarão impostos,
não dá chance ao sujeito de fazer um pedido como se faz popularmente, enfim, de
fazer uma demanda.
A
interpretação não visa à demanda, mas sim ao desejo. A interpretação faz furo
no céu do desejo inconsciente. A interpretação abre um real de espanto onde o
sujeito pode ver uma constelação de pensamentos que apesar de serem dele, não
se sabia da sua existência. A análise produz dia, luz, clarão radiante onde
tudo era noite sombria na vida do analisando.
Mas a análise
traz também em seu bojo, a noite e suas sombras quando o brilho excessivo do
real acaba por produzir uma cegueira insuportável. A análise produz a sucessão
dos dias – travessia - reproduzindo a vida dentro da vida, a morte dentro da
morte, mas também a vida dentro da morte e seu reverso, isto é, a morte no
interior da vida.
A análise
permite a abertura do céu do inconsciente para o próprio analisante. O
descortinar de um véu, produz a possibilidade de um percurso nunca antes
transcorrido. Percurso difícil onde por vezes parece um céu infinito noutras um
dia claro e em outras ocasiões, parece não haver caminho possível para se trilhar. Deste lugar sem saída, desta
posição de desterramento insuportável tal como um fora de casa, fora de seu ethos, surge a dimensão de algo que não
engana: a angústia.
A angústia:
desespero do mal-estar
O sentimento de culpa nada mais é do que uma variante topográfica da angústia
Sigmund Freud - O mal
estar na civilização
É essencial domesticar os deuses no engano, na falácia do
desejo, e não despertar-lhes angústia
Jacques Lacan - A angústia
Para
pensarmos a culpa temos que, a partir deste nosso referencial que é a
psicanálise, articular esta noção com a angústia. Com isso estaremos
articulando com o desejo do Outro. Esse Outro que na modernidade responde pelo
nome de globalização. Mas o que é a globalização?
A
globalização é o estagio supremo do imperialismo.
O controle
globalizante funciona como um grande Outro que ao enunciar o seu desejo, põe
cada sujeito em confronto com a angústia. A angústia está sempre articulada ao
desejo enigmático do Outro. Este desejo enigmático do Outro, transforma-se para
cada um em gozo, gozo do Outro, numa quota de sofrimento por não ser possível
na sociedade moderna, dar conta de tudo aquilo que ela produz para o consumo.
Este descalabro entre aquilo que o sujeito deve e aquilo que ele realmente
pode, cria um descompasso angustiante nas relações entre as pessoas.
O objeto adquirido
pode ser minúsculo ou mesmo insignificante aos olhos mas mesmo assim pode
produzir uma revolução interna tal como diz Machado de Assis a respeito do que
sofre a alma humana, em seu conto, O espelho. “A alma exterior pode ser um
espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há
casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma
pessoa.”[3]
A
globalização pretende, ao apontar as diferenças entre aquilo que não se tem e o
que se deveria ter, que todos possam uniformizar-se, e, assim apagar exatamente
as diferenças.
Nós
psicanalistas sabemos que a tentativa de apagar a diferença tem por finalidade
uma evitação do confronto com a castração.
A
psicanálise, embora Freud tivesse uma grande admiração por Darwin, não é uma
teoria evolucionista. Freud pensa o homem como um ser que existe a partir de
suas relações com seus entes mais próximos; avós, pais e filhos. Para além
disso, tudo o mais funciona para o sujeito através da maneira pela qual recebe
do mundo suas impressões.
A estrutura
do complexo de Édipo, e todas as relações humanas daí derivadas, as paixões, os
medos, as fobias, as conquistas, as planícies e precipícios do amor, tudo isso
pode ser encontrado desde os primeiros registros da escrita do homem. Quer se
vá aos manuscritos sacro-religiosos, quer se mergulhe nas tragédias gregas,
principalmente aí, podemos encontrar o lastro que dá vida ao mistério da vida.
A psicanálise
nasce com a modernidade. A experiência da cura é uma contraexperiência do cogito. A palavra exila o sujeito de si
mesmo e a psicanálise pode ser o lugar onde esta experiência se relata, se
narra, se formula em seu silêncio. A narrativa través da associação livre,
resgata a dignidade da palavra perdida na constelação da vida humana. A
palavra, lavra, marca a condição de ser estranho
em relação ao que se acbou de proferir. O sujeito para a psicanálise é o
sujeito moderno, o sujeito da ciência , como tal, ele deve ser pensado não do
ponto de vista evolucionista mas do ponto de vista das suas relações com o
Outro. Não do ponto de vista ontológico, porém, ético.
A falta-a-ser
aponta para o ser-para-morte, porém é a pulsão de morte que faz com que o
sujeito tenha créditos na sua conta bancária da vida. É o excesso de gozo da
pulsão de morte que faz com que o sujeito queira aceder à vida sempre em busca
da sua felicidade. A satisfação da pulsão equivale, segundo Freud, à
felicidade. O gozo ao qual o sujeito está inicialmente atrelado na sua vida, ou
seja, esse gozo do Outro, o gozo da mãe, é esvaziado pelo significante quando
de sua entrada no campo da linguagem.
O
significante do Nome do Pai é aquele que pode realizar essa operação, porém é
este mesmo significante que cobra um preço por essa manobra de inscrição do
sujeito no mundo das trocas, metafórico, das equivalências, enfim, no mundo
simbólico. Como a criança não tem, a
priori, nenhuma mercadoria, nenhum valor que possa servir de moeda para
pagar esta dívida com relação ao pai, na verdade jamais terá por se tratar de
uma dívida simbólica, ela tenta saldar este ônus com seu sintoma. O sintoma passa a ser a moeda corrente no
campo subjetivo onde se inscreve a metáfora paterna. O colorido, muitas vezes
nefasto, do sintoma, aparece pincelado nas entrelinhas da fala do neurótico.
A psicanálise
é uma prática que ao privilegiar a singularidade de cada um, pode fazer
resgatar algo subsumido diante do gozo absolutista do Outro, a angústia e a
culpa..
A tentativa
globalizante das psicoterapias é de adaptação do sujeito à realidade e é sempre
ortopédica. É sempre com o intuito de tentar moldar a instabilidade do objeto
da pulsão. A angústia funda o sujeito enquanto sujeito da dúvida, enquanto
sujeito da dívida-culpa. Ao fundar o sujeito, a angústia o coloca numa relação
diante do mundo na qual ele tem que posicionar-se segundo seu desejo. A
angústia dá mostras que diante do mundo o sujeito, mesmo abismando-se, não pode
ser indiferente a ele.
Segundo
Heidegger, “é a angústia que pela primeira vez abre o mundo como mundo”.[4]
Em Ser e Tempo, ele indica que o nexo
ontológico entre angústia e temor é ainda obscuro e, por isso, propõe-se a
analisá-los. Heidegger define o temor como um ente intramundano que, advindo de
determinada região, torna-se, de maneira ameaçadora, cada vez mais próximo. O
que é sempre algo intramundano como um ente que se retira,porém, a ameaça é a
própria pre-sença. E por pre-sença, entende-se que é o ser-no-mundo. Aquilo,
diz Heidegger, com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo. O retorno do
mesmo de algo que se retira é o indeterminado da angústia.
Neste ponto
podemos estabelecer alguma semelhança entre essa descrição heideggeriana da
angústia e o fenômeno do estranho - unheimlich
- analisado por Freud.
Neste texto,
Freud nos diz que há a produção de uma angústia a partir de um sentimento de
estranheza, quando algo que era familiar retorna imprevisivelmente como
estranho. Para Heidegger, “aquilo que se teme é sempre um ente intramundano
que, advindo de determinada região, torna-se, de maneira ameaçadora, cada vez
mais próximo.”[5]
Do ponto de
vista do ensino lacaniano, a angústia é não
sem objeto. É óbvio que para se falar da angústia, ou melhor, para podermos
nomeá-la, faz-se necessária a sua aparição como um evento fenomenológico. Da
causa da angústia, temos que na análise, procurar através da construção
fantasmática, a etiologia segundo a neurose de cada um. E na procura pela
etiologia, que, vale lembrar, é sempre sexual, está a possibilidade do
confronto com o objeto a, o objeto
causa do desejo. É em relação à esse objeto que a angústia se estrutura.
Ora, se tal
como a culpa, a angústia é estrutural, podemos dizer que não há uma análise sem
que a angústia não esteja presente. Sua presença implica que haja um confronto
com o real da castração.
O infantil,
em última instância, refere-se ao encontro inevitável com a castração. A dureza
da vida é o encontro traumático com o sexual, a castração. A dureza da vida é
quando não há mais nenhum artifício que se possa interpor entre o sujeito e sua
realidade. Estes artifícios pretendem aplacar o confronto com aquilo que há de
insuportável para a vida. Têm, por assim dizer, uma dimensão-fetiche de
desmentir a diferença sexual, de desmentir o furo da falta-a-ser do sujeito.
São, portanto, objetos fetiches, fálicos, que pretendem dar um sentimento de
poder e força para os que se acham desvalidos de uma razão que os ilumine na
escuridão amarga de suas parcas identificações. A denegação da castração que o
fetiche vem respaldar tem o intuito de aplacar a dor, o sofrimento pela
constatação da diferença sexual. O sujeito busca através destes artifícios,
recuperar o tempero das amarras que o sustentam simbolicamente na vida. Embora
a vida possa ser confinada apenas sob este aspecto de sua dureza, Freud nos
lembra que mesmo assim, é a única que temos. É nosso dever ético cuidar dela da
melhor forma possível.
Por outro
lado, os artifícios que podem ser interpostos entre o sujeito e a sua
realidade, com o intuito de aplacá-la, de torná-la suportável, podem ter um
caráter de mascaramento da verdade, ou seja, evidenciam a dimensão do engano e
da ilusão.
O desamparo
deixa a criança numa situação de desabrigo e faz com que ela saia da condição
de mera espectadora da cena fantasmática e se torne coadjuvante desta montagem.
Capturado nessa dimensão, sem possibilidades de dar uma significação plausível,
o sujeito recalca no inconsciente na espera de dias melhores, mais afortunados,
que possam aplacar a angústia do trauma. Ora, o retorno do recalcado não
escolhe um momento qualquer. Seu retorno se dá justamente quando o sujeito
detestaria de ter uma experiência novamente como aquela vivida da infância. A
precisão ingrata do retorno faz eclodir a dimensão do insuportável. E assim, o
desejo inconsciente se revela sequioso de se fazer satisfeito, mas por permanecer
atrelado a um não saber sobre a verdade que o causa, ele insiste sobre um
núcleo traumático e desconhecido para o sujeito. O desconforto desta
insistência e, é claro, a sua não realização, acabam por fragilizar a vida
humana. O céu da sua vida escurece e a sensação é de que jamais vai haver o
amanhã. Depressão?
Para o
sujeito há um Outro, insuportável, que o obriga a não só restaurar um estado
anterior de coisas, bem como dar conta da satisfação da pulsão. Tarefa
impossível já que o desejo do Outro é sempre enigmático e a forma pela qual o
sujeito responde ao enigma do desejo do Outro é com a angústia. A angústia
constitui-se assim, como a constatação do fracasso do homem, seu grande
paradigma em sua infrutífera tentativa de se prevenir contra o desejo do Outro.
É desta maneira que a angústia se correlaciona com o desejo do Outro. E é
também o caminho usado pelo sujeito para não agir segundo seu desejo, ou seja,
abrigar-se na espúria covardia moral. Por isso dizemos que o contrário da ética
não é a anti-ética, ou a imoralidade, mas sim a covardia moral. A ética é o
julgamento crítico que se faz da moral, das leis, dos costumes e das tradições.
No seminário A angústia, 1962/63, Lacan diz que a
angústia é um afeto do sujeito. E o que afeta ao sujeito é o desejo do Outro.
Na angústia, é a relação do sujeito ao Outro que encontra-se afetada. A
angústia constitui-se como um afeto que não engana porque o desejo do Outro
comporta uma dimensão de gozo não dialetizável, abrindo assim a dimensão
insuportável da verdade inconsciente, sem enganos, sem máscaras e sem ilusões.
Se a angústia não engana, então o quê engana ao neurótico? O que engana é a
localização da angústia. O sujeito pensa que onde ela surge é exatamente onde
ela se localiza. Puro engano. Ela se
manifesta no corpo mas ela tem sua causa etiológica determinada pela posição
fantasmática do sujeito. É no nível da fantasia que a angústia se localiza e
não na dimensão fenomenológico-imaginário do eu como ele erroneamente pensa.
A angústia
enquanto sinal invade o corpo manifestando-se como: sufocamento, um sentir-se
mal, não estar à vontade, sentir-se sem lugar ou fora de lugar, mal-estar,
desconforto na vida, desamparo, constatação na fragilidade de uma dependência
excessiva, tremores injustificados, calafrios, insônia, fome devoradora, diarreia,
vertigem, distúrbios respiratórios, taquicardia, bradicardia, irritabilidade
excessiva, distúrbios neuro-vegetativos, etc.
A angústia
comprime, esmaga e sufoca, deixando o sujeito sem saída, encurralado, morto de
medo. Por isso, a ética do desejo aparece como uma resposta ao impasse da
angústia. Se na angústia falta um sentido, uma orientação para a vida, a ética
do desejo implica num saber fazer algo sobre a vida.
A
manifestação da angústia advém, como já dissemos, através do descortinar do
objeto a, que é um objeto causa de
desejo e mais de gozar. Então, a angústia dá o seu sinal no lugar do eu ideal,
i(a). Na verdade, ela se localiza na fantasia.
O objeto a é
um objeto causa do desejo e plus de gozo. É, em suma, um objeto perdido,
jamais reencontrado. Então, é a função do imaginário “i”, que recobre, envelopa
e protege - é o parênteses - o objeto a
de se manifestar. Recobre com outros objetos necessários possíveis da vida cotidiana. Qualquer objeto,
objeto pulsional pode estar neste lugar
de defesa, anteparo contra angústia. É
neste nível do eu ideal onde a criança pode se sentir olhada pela mãe e,
através deste olhar, se reconhecer no olhar dela.
Porém, há algo neste olhar que escapa, que
cai, que não é assimilado, que não se sustenta, que fica como um enigma não
decifrado pela criança, que fica como um resto, um nada, que por ser justamente
um nada, causa o desejo, surgindo assim a angústia pela impossibilidade de dar
uma significação ou capturar este vazio que não se recobre, que é o enigma do
desejo do Outro. O objeto a, é
portanto, isto, que da relação entre o sujeito e o Outro, cai. É o
insuportável. Pertence ao campo do real, do impossível de dizer, enfim, da
castração.
A função
imaginária do eu ideal trata então de revestir a dura realidade do possível
encontro com este objeto impossível, colocando contornos e limites através das
identificações imaginárias. É óbvio que
estas identificações imaginárias só terão a sua inscrição neste plano psíquico
do eu ideal, se forem legitimadas, ratificadas, ou ainda, nomeadas pelo
simbólico.
O campo do
Outro é lugar onde surgem as nomeações que irão recobrir o imaginário fazendo
com que o corpo ganhe sua significação e, portanto, saia do desamparo. Esta
nomeação é o que Freud fala como a erotização de um corpo. A angústia em
relação ao desejo do Outro, coloca o sujeito numa certa atopia e alienação do
seu próprio desejo pois ele está alienado no campo do Outro. Tal como Hamlet
que está sempre na hora do Outro, sempre a procrastinar o que deve ser feito,
sempre a evitar o encontro com verdade.
Lacan
concorda com Freud quando este diz que o ego é a sede real da angústia. Em
Freud, devemos entender o ich, o eu,
como objeto, mas também como sujeito. É no eu, enquanto definido como a
projeção da superfície do corpo, onde se dá a manifestação ruidosa da angústia,
que põe o sujeito num descompasso, susceptível à tremores, calafrios,
taquicardias e tudo o mais que já descrevemos como o que concorre nesta
referência fenomenológica. Na angústia, o sujeito fica atordoado pela falta de
sentido porque o que ocorre é uma desestabilização no imaginário. Num evento
traumático, o eu ideal que teria por função tamponar a emergência do objeto a, sofre um forte abalo e, com isso, há
a possibilidade de que o sujeito se confronte com este objeto sem nenhum
anteparo, sem nenhuma defesa. Quer dizer, a desestabilização no imaginário põe,
de certa forma, o sujeito à céu aberto, desamparado. O pano de fundo por onde a angústia se
instalaria se articularia da seguinte maneira: haveria a ocorrência de uma
desestabilização no imaginário, que produziria uma quebra no simbólico, fazendo
emergir o real da angústia.
Ora, esta
função imaginarizada do i(a), tinha por finalidade instituir uma garantia que
impedisse que o sujeito se confrontasse com sua falta. Mas isso já é a
constatação da dimensão da falta, apenas encoberta por algum sentido
imaginário. A angústia ocorre quando há imaginariamente a possibilidade desta
falta vir a faltar. Se isso ocorre, o sujeito tem que se confrontar com seu
desejo, que é, no fundo, desejo incestuoso, inscrito em definitivo por ocasião
do complexo de castração. Por isso, o sujeito vai em busca de algo, algum
sentido, que se interponha entre ele e o mundo que o sobressalta. A pletora de
sentidos que o humano vai buscar durante a vida tem a finalidade última de
obturar a falta.
O
procedimento analítico visa, assim, descortinar para o sujeito a função de
engano e ilusão através dos quais muitos destes sentidos que afetam sua vida,
foram construídos. Se o homem sempre esteve em busca de um sentido que
norteasse sua vida, isto não quer dizer de forma nenhuma que o sentido
encontrado é o sentido esperado. Ao contrário, na maioria das vezes, o sentido
encontrado acaba sendo constituído por ser aquele que:
1)
por alguma facilidade/comodidade, foi o primeiro que
lhe foi possível capturar em sua dimensão imaginária, e assim, acalmar uma
certa dose de estranhamento em relação à realidade que o cercava;
2)
foi o que lhe trouxe alívio imediato, ou anestesiou
suas dores, respondendo de certa forma, alguns de seus enigmas e inquietações;
3)
enfim, pode ter sido aquele que conseguiu evitar de
alguma forma o desprazer mais intenso - o que pode tê-lo feito acreditar que a
evitação do desprazer seria homólogo ao sentimento de prazer.
Esta última
forma seria aquela através da qual o sujeito acreditaria ter encontrado um
enorme sentido para sua existência ao se propor a evitação justamente da vida.
É possível que se viva muito bem, alienado desta maneira. Porém, se algum dia,
um evento produzir a retirada desta certeza, todas as suas quotas de
referências e garantias sobre a vida desmoronam-se junto com ele, sobrevindo o
colapso da angústia. Quando a falta pode faltar, surge a possibilidade da
angústia manifestar-se como correlativa à presentificação absoluta do Outro.
Em geral, esta queda em precipício, pode ser o que
conduza o sujeito até ao interior de uma análise. A constatação decorrente é a
de que, frequentemente, a evitação da vida, já é a morte anunciada. Em
consequência disso, o homem na sociedade moderna tem tentado alucinadamente
absorver tudo que lhe é oferecido. Pensa iludidamente, que ao fazer assim,
consiga viver de um modo mais intenso e feliz. A fúria da avalanche de
mercadorias e produtos ofertados cria um enorme descompasso entre o
investimento feito e o retorno esperado. Entre o objeto buscado e a satisfação
encontrada. Há aí um fosso abissal que separa o ter do ser.
O sujeito se
engana ao pensar que se ele tiver ele será. A dimensão do ter é momentânea, às
vezes ilusória e sempre passageira. Já a dimensão do ser implica na
possibilidade da falta-a-ser, e assim esta condição pode ser o percurso de uma
vida. Não uma beata vita, uma vida
feliz, mas ao menos uma dolce vita,
uma vida, digamos assim para não traduzirmos ao pé da letra, menos amarga, com
menos sofrimento neurótico, o que nos dá ainda a possibilidade de saber o que
fazer com ela.
A Ética
do Desejo
Deus ou quer impedir os males e não pode, ou pode e
não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é
impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que,
do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e
impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa
compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é
que não os impede?
Epicuro
O antigo
ideal estoico primava pela atitude de quem vivia para dominar os afetos,
suportar serenamente o sofrimento e se contentar com a virtude como fonte única
de felicidade (eudaimonia). Este
ideal visava um estado de perfeita harmonia entre o corpo e a alma. O bom
caminho, como resposta à vida, deveria ser a consequência natural de uma
prática virtuosa que teria por finalidade a evitação dos vícios que seriam, por
sua vez, a encarnação definitiva do mal.
Este ideal
goza de uma não atitude, de um não comprometimento com aquilo que decididamente
o afeto não deixa ocultar: o encontro do homem com a verdade.
O malogro das
relações no mundo moderno incide justamente numa espécie de retorno a este
ponto. Esta recaída ou se podemos dizer, esta insistência sobre a constante
ocultação da verdade tende levar o ser humano a uma dimensão igualmente
constante do engano e da ilusão. O mergulho na falácia ilusória moderna
prende-se à avalanche caótica de produtos (gadgets)
que prometem justamente o que o antigo ideal estóico se dedicava a conseguir: a
felicidade.
A luta
martirizada pela sobrevivência, a despolitização do cidadão devido à inércia do
poder público e aos altos índices de corrupção, assim como a crescente
descrença que se contrasta com um religiosismo cada vez mais radical e
fundamentalista, parecem ter esvaziado a condição de certa dignidade de vida
para os seres humanos.
A banalização
do mal é a violência que bate cotidianamente em nossas portas. A violência
abole a condição de ser-no-mundo, de habitá-lo, de fazer do mundo seu ethos, sua morada ética. A violência
exclui o homem de sua própria casa e sua primeira morada deveria ser o acesso
ao seu desejo.
Quando os
meios para a existência do homem são insuficientes, quando não lhe são
oferecidas oportunidades de escolha - e a ética implica numa possibilidade de
poder escolher - talvez então tenha
chegado a hora de pensarmos para estes violentados pelo mundo moderno,
numa ética que nos implique a todos sem que para isto nos afastemos de nossas
singularidades. Uma ética que possa ser a ética do desejo e que não se abstenha
em ir de encontro da covardia moral.
Contra esta atitude invocamos a responsabilidade
ética. Uma ética que seria a ética do desejo através da qual não se vive em
relação ao que se gostaria que fosse vivido, mas antes, ao que tem que ser
vivido sem abrir mão de se conjugar a concretização de se amar aquilo que se
deseja e de desejar o que se ama.
O rigor desta
posição não se refere à nenhum ideal, mas sim à um saber fazer (savoir faire) que pode não ser o mais cômodo,
mas é seguramente, aquele que impede que o sujeito viva alienado em suas parcas
ilusões. É uma ética da singularidade. Através da ética do desejo, o ato
criativo pode ser a resposta contra o mal-estar da covardia moral, contra as
falsas esperanças, as ilusões ou o refúgio nas toxicomanias.
Na
encruzilhada de uma decisão, pode não ser muito o que cada um de nós possa
fazer individualmente, mas seguramente pode ser um bom começo para exercermos
criticamente a faculdade de sempre estarmos disponíveis para repensarmos nossa
posição no mundo. O analista não pode se curvar diante do desejo para dele
fazer um ícone do seu ideal. A nossa passagem pela vida é meteórica e, às vezes
não nos damos a chance da liberdade da escolha: se vamos querer ficar alienados
numa covardia moral ou se levantamos os olhos para abraçarmos a causa da nossa
ética do desejo.
[1] FREUD,
Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. (1950[1895]) in Obras
completas, v.I, parte II, Psicopatologia, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977,
p. 464.
[2] “Digamos
que o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio
acesso à verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu
desejo, o que é propriamente o objeto do sacrifício.” LACAN, Jacques. A ciência
e a verdade, in Escritos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998, p. 887.
[3] Assis,
Machado de. O espelho, in, Papéis avulsos, Obra Completa, RJ, Nova Aguilar,
1986.
[4]
HEIDEGGER, Martin, Ser e tempo, parte I, Petrópolis, Ed. Vozes, 1988,
p. 251.
[5] ibid, op.cit, p. 249.
Texto sensível, elucidativo e parresiasta, encoraja-nos a dizer sim à existência!
ResponderExcluirObrigado pelas tuas palavras, Pérola Sanfelice. Abcs
ResponderExcluirExcelente....psicanálise novos pensares com menos pesares liberta a ética do desejo do sujeito como individuo único naquilo que lhe afeta.
ResponderExcluirQuantas pessoas deixam de existir por simplesmente terem aquilo que imaginam ser. Oculta um potencial atrás de coisas e não imaginam o tão quanto é bom poder gozar com todo o potencial.
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