segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Sobre a angústia ou "O despovoador" de S. Beckett

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A angústia pode ser definida como um sentimento/afeto para o qual não há saída. O sujeito se culpa por não ser capaz de achar um caminho para a vida. E sofre. Assim é que Freud no Mal-Estar na Civilização (1930) diz que a culpa é uma variante topográfica da angústia. A angústia é o medo/terror diante do futuro, ou é o futuro antecipado de forma apocalíptica.
Para Heidegger, a angústia surge do nada. É apenas um vazio que está dentro de si que não tem nehuma causa ou que é causa de si mesma, causa sui.
Para Lacan, em seu retorno a Freud, a angústia é um nada só que, diferentemente de Heidegger, este nada não é sem objeto. Ou seja, há um objeto da angústia que comprime, constrange e esmaga o sujeito. Muitas vezes ele é um objeto fóbico. A fobia por sua vez pode ser um 'apelo ao pai'. A questão é que este objeto não é identificável fora da análise. É preciso que a análise desvende do inconsciente aquilo que é impossível de ser dito. Um objeto que muitas vezes causa ao mesmo tempo, desejo e horror/repulsa/asco/nojo e vergonha. A proposta de uma análise, entre outras coisas, é fazer com que o sujeito possa dizer o indizível da angústia, saber de seus limites possíveis e caminhar em seu bem-dizer. Este indizível se materializa em situações ou soluções fóbicas do quotidiano que apesar de aparentemente servirem de proteção contra a angústia, impedem que o sujeito respire o ar da sua autonomia. A mortificação causada pela angústia é a mortificação do desejo inconsciente. Apagado em sua possibilidade de viver, o sujeito sucumbe ao cinza dos seus dias-sem-saída. Não é sem propósito que Freud identificou aí o sujeito em sua covardia moral como antinômico do sujeito ético. A Beata Vita, a vida feliz, fica então subsumida sob um território pantanoso onde cada passo em falso pode ser o próximo para a areia movediça do seu afeto. A angústia é um afeto que não engana e esta certeza destrói/corrói os muros de contenção que até então protegiam o sujeito: seus sintomas. Nesta perspectiva, para o neurótico é preferível fazer sintomas do que se deparar diante da angústia, que no fim das contas é angústia de castração, angústia diante da morte. Muitas vezes os sintomas são um norte, uma caminho a seguir. Quando o sujeito procura uma análise pode-se dizer que onde existia um sintoma a angústia irrompeu de forma abrupta/selvagem e sem sentido, tornando-o desbussolado para a vida.
O despovoador (1970), texto tardio de Samuel Beckett (1906/1989), é essencial para pensarmos a angústia. A cena se passa toda dentro de "um cilindro de cinquenta metros de circunferência e dezesseis de altura em nome da harmonia (sic) ou seja mais ou menos mil e duzentos metros quadrados de superfície total sendo oitocentos de parede. Sem contar os nichos e túneis. Onipresença de uma fraca claridade amarela sacudida por um vaivém vertiginoso entre extremos que se tocam. Um corpo por metro quadrado, ou seja, um total de duzentos corpos número redondo". Beckett não nos diz quando isso começou, ou seja, quando ou como eles entraram lá. E, na verdade, não precisa, pois a princípio, a angústia não tem origem e nem fim. Eles estão lá e é o que basta. Estão sem saída. E isso não basta. Crianças recém-nascidas, jovens, adultos e velhos, divididos em algumas categorias: os vencidos, os buscadores, os agitados e os sedentários. As escadas para se alcançar os nichos e os túneis são poucas e faltam degraus. Ainda por cima, deve-se obedecer uma certa ordem circular, como no Inferno de Dante, para se alcançar a possibilidade de subir e descer os círculos do cilindro. Quando esta ordem é quebrada, a violência é escutada através dos murros e cabeçadas. A iluminação é fraca, mas o olho acostuma-se a tudo e a temperatura, "ela leva menos de quatro secundos para passar de seu mínimo que é de cinco graus a seu máximo de vinte e cinco, ou seja, uma média de cinco graus apeenas por segundo". A precisão numérica/métrica/termoelétrica de Beckett só faz aumentar a dimensão cirúrgica do cinza-sem-saída da angústia na qual vivem as duzentas pessoas no cilindro. Ao contrário de Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira, Beckett não precisa aludir às escatologias humanas para dar o tom de fim-de-mundo. Na verdade, ele nos fala que o cilindro é incômodo para o amor, a pele fica ressecada e sujeita a arrepios e "a ereção é rara". Isso basta para nos dar a ideia do desassossego da alma tal como em Fenando Pessoa. Como dissemos sobre o indizível que é a angústia, Beckett também nos alerta que "nem tudo foi dito e nunca será" nos antecipando um fim sem fim. Talvez esta seja uma bela metáfora para a própria vida, pois o homem busca tanto saber sobre sua origem para tentar saber sobre o seu fim. Com isso ele ilusoriamente imagina que poderia em seus pensamentos, ao tentar antecipá-lo, saber um pouco mais sobre si e, portanto, desangustiar-se. Mas o cilindro só oferece mistérios. Ninguém se deita e "ninguém olha para dentro de si onde não pode haver ninguém".
Se a angústia é pressentida como uma dor de existir, o caminhar na vida através da análise - embora muitas vezes seja extremamente difícil -, é uma aposta que depois da dor, a luz que a palavra revela compensará o caminho percorrido e a vida por viver.

Carlos Eduardo Leal

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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

É possível a arte escapar ao brilho narcísico? Ou, sobre livros e Jabutis...


É possível a arte escapar ao brilho narcísico? Ou, sobre livros e Jabutis...

Há muito sabemos sobre o mito de Narciso. Uma das melhores versões pode ser encontrada no poeta Ovídio (43 a.C. 18 d.C.), em seu livro Metamorfoses. Narciso é a história do belo rapaz, com o destino de ser feliz “se não se conhecer”. Sempre acompanhado de Eco, a mulher por detrás das pedras que só repete suas últimas palavras. Narciso não a escuta porque está apaixonado por sua imagem. A mesma imagem que o petrifica é causa de seu esplendor: horror (pela perda de sua consistência) e amor cego pela aparência. Narciso é símbolo inequívoco da fogueira das vaidades humanas. Freud já apontava para as rivalidades entre os seres humanos, as lutas de puro prestígio e relações hegelianas entre o senhor e o escravo, como um narcisismo das pequenas diferenças.

No narcisismo, o outro é sempre um intruso. No mundo moderno, acelerado pela veloz difusão da internet, há um rol crescente de intolerâncias, xenofobias, racismos, invejas, fundamentalismos, cobiças, ganâncias e todo o tipo promoção pessoal para se conquistar a fama a qualquer preço. Todos querem lucrar rápido. Todos parecem não ter tempo a perder, pois parecem precisar enlouquecidamente deixar alguma marca neste mundo. Se crenças seculares não mais respondem às mesmas perguntas sobre nosso passado e futuro, a vida parece se projetar num único e vazio hic et nunc. Com certeza que há um empobrecimento por este aqui e agora. A vida fast food, digere mal o que se consome nas prateleiras da vida.

Obviamente que não sou contra o marketing, como, a princípio, se poderia pensar. Aliás, gosto dele e aprecio fórmulas criativas na propaganda. Quando comecei a lecionar há quase trinta anos, dava aula de Psicologia da Propaganda e Marketing. O problema não é a criação, mas a eterna busca pelo brilho narcísico que se deteriora com uma velocidade espantosa. Querem a fama pela fama. O pedestal no qual está amparado o sujeito narcísico é frágil e se quebra com facilidade.

Pois bem. A arte não escapa, nunca escapou ao fantasma das rivalidades narcísicas. Aliás, ela, ao longo da história, muitas vezes se alimentou disso. Novas e brilhantes teorias foram escritas em todos os campos do saber para tentar derrubar outras igualmente importantes. Novas obras de arte foram esculpidas e pintadas para quebrar movimentos que excluíam o novo, o outro, o intruso. Músicas foram compostas para superar rivais e poderem tocar com exclusividade para os reis.

Portanto, a luta por uma fatia do mercado não é nova. Mudaram-se as formas, mas o conteúdo de acirramento das vaidades permanecerá o mesmo. Isto é do humano-ser.

Nos últimos dias, tenho acompanhado com atenção as reviravoltas do mercado editorial em torno dos prêmios literários no Brasil. O jornal Folha de São Paulo, em seu caderno Ilustríssima, publicou no dia 14 de novembro a matéria: “O dia do juízo: a política dos prêmios literários”. Ainda no mesmo caderno uma entrevista com Sérgio Machado (presidente do Grupo Record): “Edney Silvestre foi garfado”. É claro que sobre uma polêmica destas ele não poderia ficar sem resposta e, neste domingo, dia 21/11, Luis Schwarcz retruca: “Quem garfou Edney Silvestre? Ou como se discute um prêmio literário no Brasil”. (Para ler sobre estes textos: folha.com/ilustrissima).

Não vou entrar na celeuma sobre Chico Buarque (de quem li O leite derramado), Edney Silvestre (de quem ainda não li Se eu fechar os olhos agora), Sérgio Machado, Luiz Schwarcz, etc. Na verdade, se o momento é de crise, é preciso poder aprender alguma coisa com ele. Desta luta de puro prestígio não há vencedores. Já se disse que de uma guerra ninguém sai vitorioso. Então, o que podemos aprender com isto? Lembro que quando atacaram as Torres Gêmeas, Busch disse que ou o mundo estava a favor do terrorismo ou estava a favor dos americanos. Uma posição sem saída? Aparentemente sim, se desta luta maniqueísta entre bem e mal não se produzisse uma terceira opção. E houve. O filósofo esloveno Savoj Zizek, escreveu um belo artigo em que dizia não querer nem um nem outro. E propunha uma terceira via que era uma lógica da função paterna que produzisse a castração e, assim, o corte no embate furioso entre as rivalidades narcísicas. O artigo era denso, extenso e me valeu muito para entender na época a crise que abalaria o mundo.

Então há que se pensar numa terceira via, pois o momento é extremamente fecundo para não “fecharmos os olhos agora”. Acompanho um crescente número de Festas Literárias (Flip, Fliporto, Fórum das Letras de Outro Preto, Conversas Literárias em SP), iniciativas como Prosa nas livrarias, Eu, o leitor, casas de produção de cultura ligadas aos livros, escritores e leitores, uma multiplicidade de obras de autores já consagrados de ensino técnico e/ou incentivo aos novos escritores, (No dia 07 de novembro a mesma Ilustríssima publicou “Carta a um jovem escritor” um excelente texto de Leyla Perrone-Moisés), os livros de Harry Potter, O Senhor dos Anéis, a Saga Crepúsculo, Fala sério, professor (e mais nove livros desta mesma série) de Thalita Rebouças, entre muitos outros de uma nova geração que ajudam a formar novos leitores. É difícil, muito difícil e muitas vezes desestimulante fazer com que o jovem desenvolva o gosto pela leitura de “A moreninha” ou através do ciúme doentio de Bentinho pela sua adorável Capitu. É claro que gostaríamos que todos lessem Machado, Drummond, Shakespeare, pois é preciso não só começar, mas fundamentalmente, gostar de ler. O mercado infantil e infanto-juvenil estão aí dando provas do vigor e da avidez com que o público comparece e prestigia Bienais como se fossem a um show de rock. Com espanto e brilho de orgulho nos olhos, presenciei uma multidão na última Bienal em São Paulo.

Além do que, novas editoras surgem da noite para o dia. O que isto tudo representa? Por um lado, um mercado livreiro em franca expansão e, por outro, interesses econômicos em jogo que terminam em disputas narcísicas. Sempre que está em jogo Um Pai, a luta entre os filhos para saber quem será o preferido produz mortes e rivalidades eternas. Desde Caim e Abel. E acabam por esquecer o que se plantou (Abel) ou o que se fez do leite (Caim).

Assim, nesta eterna disputa narcísica, será que não acabam por esquecer aquele que eles mais deveriam se preocupar: o leitor?

Carlos Eduardo Leal

Psicanalista e escritor

domingo, 20 de junho de 2010

Hamlet ou a morte do pai: luto e tragédia do desejo

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Laurence Olivier

Anotações para um debate sobre o filme "Hamlet"

A encruzilhada hamletiana pousa sobre uma frase de Freud: "a punição espera pelo desobediente". A tragédia de Hamlet gira em torno da morte do pai e da culpa que, como diz Freud, é uma variante topográfica da angústia.
O que o Outro quer do meu eu? Esta parece ser a impossível verdade a ser encontrada pelo jovem Hamlet que em sua indecisão de agir estabelece para si mesmo uma culpa transgressora. E os transgressores são punidos com o remorso. "Remorso" em latim remorsus, o particípio passado de remordere, significa tornar a morder. Lugar comum para o caráter anal-sádico tão evidente na neurose obsessiva. É uma culpa que morde o neurótico não lhe dando coragem para a ação.
Aqui a neurose trabalha para colocar a morte como um significante mestre. A pulsão de morte, o gozo mortífero é o drama que se delineia nesta tragédia.
Por que Hamlet, ao contrário de Édipo, não age? Por que ele procrastina em sua decisão de vingar a morte do pai? Há um imperialismo do gozo do Outro sobre o sujeito. Este gozo do Outro é um gozo fundamentalista que não se submete à lei. A castração, a verdade e a morte é o que Hamlet tenta evitar.
O luto não nos dá nenhum saber sobre a morte. Ao contrário, ao tentar elaborar uma perda, ele no coloca nos limites da vida. Há um não-todo, há um, "não se pode tudo" diante do luto. A tentativa de se simbolizar uma perda é a confrontação de que a vida é falha e ela rateia justamente a partir da transmissão de um saber do pai para o filho. É neste sentido que para hamlet seu pai já estava morto e ele não sabia. Ao saber na confrontação com o espectro de seu pai, ele se assusta com este saber sem defesa. Por isso ele procrastina o encontro com a verdade. Em sua genealogia já encontramos a morte simbólica do pai: o pai está morto desde sempre.
Há um real da perda do objeto e diante disto o sujeito precisa elaborar uma falta (simbólica). Fazer passar o real através do simbólico é, de alguma forma, poder realizar o luto.
Se Édipo claudica, Hamlet hesita. Assim a 'impossibilidade' é um outro nome para o filho do rei da Dinamarca.
Neste sentido, se o desejo é impossível, o luto também o é. E se não há saída através do luto, abre-se um espaço para a depressão. Aqui, tempo e espaço são decisivos na clínica quotidiana. Afunila-se os espaços e reduz-se o tempo de existir. É a dúvida hamletiana sobre ser ou não ser.
O luto é uma tentativa de resposta simbólica ao real de uma perda. Há uma espécie de forclusão no luto porque o retorno do objeto morto é impossível. O trabalho do luto consiste, pois, a partir desta perda no real, por-se a trabalho para conservar ao menos a imagem, os traços significantes da história e tentar anular a impossibilidade de dizer a morte.
Diante do luto há algumas consequências: desestabilização do imaginário, quebra do simbólico e irrupção do real. Além de um empobrecimento do eu, perda do sentimento de auto-estima e desinteresse pela vida.
O tempo do luto é este tempo que oscila entre a perda do objeto e sua elaboração simbólica. Neste tempo surge a pergunta para a qual o sujeito luta para encontrar a resposta: o que sou eu para o Outro? A angústia é o medo que a falta, falte. E, se ainda há chance de se fazer esta pergunta, é porque o sujeito ainda não está totalmente paralisado diante da angústia de castração.
Falta=simbólica Perda=real
O luto não seria uma retomada daquilo que Freud havia observado nas identificações? Aquela mítica ao pai da incorporação, que nos reenvia à metáfora paterna e ao Nome-do-Pai? Assim, todo luto verdadeiro não seria um eco desse luto mítico, onde a lei se institui através do crime do pai da horda?
Na histeria, os sintomas a levam à denegação de seu desejo pelo pai morto e cujo luto está por ser feito.
Na neurose obsessiva, o que faz retorno no luto é a questão do gozo do Outro: pela anulação e através do isolamento, o obsessivo se coloca a tentar apagar os traços da morte.
HAMLET: o rei da Dinamarca
HAMLET: o príncipe e filho do rei.
Hamlet se encontra com seu pai morto
Hamlet se encontra com seu nome morto. (Assim como Van Gogh, que teve um irmão natimorto com seu mesmo nome, encontrava-se consigo mesmo na lápide do cemitério ao lado da igreja que frequentava quando criança. Lá estava enterrado Vincent Van Gogh). É com esta identificação ao que já estava morto em seu nome que Hamlet mortifica seu desejo. A tragédia de seu desejo não tem outro fim que não a morte.
A análise propõe uma outra saída que não a trágica. A análise aposta numa ética do desejo para além do pai, mas sem prescindir dele.
Temos uma tendência do ponto de vista clínico a opor Hamlet a Édipo. Hamlet não age porque sabe e Édipo por não saber age em busca de sua verdade. Ele a encontra e se cega. Hamlet se cega porque ele vê demais.
Mas do ponto de vista ético, prefiro contrapor Hamlet a Antígona. Ali onde Hamlet procrastina, Antígona segue em seu desejo. Se Hamlet tenta evitar o conflito, Antígona a ele se expõe sabendo que a colisão é inevitável, assim como a morte.
Hamlet tenta unificar a lei dos homens (o Estado, a mediação, a racionalidade, o bom senso, a argumentação) com a lei dos deuses (o familiar).
Antígona sabe que esta conciliação é impossível. Por isso ela vai só em sua hora, enquanto Hamlet está mortificado na hora do Outro.
Hamlet é o traço infantil de uma 'ironia' que segundo Lacan, é uma tentativa de colocação de uma pergunta ao Outro. Assim diz Hamlet:"Contudo eu, zé-ninguém feito de lama, pobre idiota sonhador, impotente para a minha causa própria, nada posso dizer, não, nem por um Rei a quem roubaram os bens e a própria vida numa pavorosa traição. Serei eu um covarde? Quem me chama vilão? Quem me parte a cabeça?"
Seu 'pensamento ruidoso', nas palavras de Freud, é o mote de sua indecisão, a demanda para que o Outro responda e, ao mesmo tempo, a tragédia de seu desejo.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Pedofilia

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Breno Melaragno - Professor PUC/RJ e Advogado Criminalista * Carlos Fortes - Promotor de Justiça - MG * Leda Nagle * Carlos Eduardo Leal – Psicanalista e escritor * Vladimir Brichta -Ator exclusivo Rede Globo * Talvane de Moraes - Psiquiatra Forense

No dia 16 de abril último, fui convidado a debater sobre a pedofilia no Programa Sem Censura da Leda Nagle, na TVE- Brasil. O tema era sobre o pedreiro Ademar de Jesus que havia matado e tido relações sexuais com 6 jovens em Luisiânia, Go. Mas, obviamente, muitas outras questões foram abordadas.

O sujeito perverso é aquele que diz que "não consegue se conter" e Edimar dizia, "não consigo parar de matar". A perversão se coloca acima da lei. Ele faz suas próprias leis. Não podemos dizer que vivemos cada vez mais numa sociedade perversa, mas numa sociedade ainda fortemente marcada pela neurose com graves traços de perversão. Ou seja, há umfranqueamento muito maior para a perversão, para o ato perverso em nosso meio social. A impunidade é o franchising da perversão. O mal, o mal-estar na civilização é o apagamento do desejo do sujeito frente à avalanche de demandas que o discurso capitalista oferece. Estafetichização das mercadorias, levam os sujeitos a um "dever de felicidade", como se fosse uma obrigação em ser feliz e uma depressão quando não se é.

Outro fato marcante que também tem acontecido é uma fratura do simbólico. Fratura das relações e dos laços simbólicos. Fratura das leis que regem as relações. Pais e filhos, professores e alunos, mestres e discípulos, patrões e empregados. As relações hierárquicas estão se esfacelando, virando pó (sic). Há micro revoluções não armadas, ou melhor, armadas em salvo-condutos, habeas-corpus, ou pior, a revolução dos celulares com câmeras de vídeo, tornou a todos espiões num reality show jamais visto até então. Todos estão vigiados e vigiam-se mutuamente num grande BBB.

A desestabilização do Imaginário (das garantias imaginárias - certezas construídas ao longo da vida), produz uma quebra, uma ruptura do simbólico (as palavras), fazendo emergir o insuportável peso do Real.

Mas o Ademar de Jesus dizia outras coisas. Dizia que ouvia vozes e que estas vozes o mandavam matar os jovens. Ora, se era assim, não se trata de uma perversão e sim de uma psicose. Não é nada raro esquizofrênicos que são assassinos obedecendo ao imperialismo gozo do Outro. Na perversão é a vontade de gozo, do próprio sujeito que faz com que ele não consiga se conter. Mas na psicose, como parece agora depois de sua morte, o sujeito alucina uma outra realidade.

Serge Cottet nos diz que "a especialidade de Lacan é o crime paranóico - não é o crime perverso, não é o crime de massa". Mas a pulsão criminosa já era vista por Freud quando ele estudou o assassinato do pai primitivo. Esta pulsão, pulsão de morte com certeza, imperativa sobre o próprio sujeito o levaria a cometer os assassinatos. Na alucinação o sujeito passa ao ato sem saber, melhor, sem um saber sobre a morte. Ao contrário da perversão na qual o sujeito sabe muito bem sim sobre seu ato. Aliás, ele o premedita. Premedita tanto que deixa brechas. CasosSuzane Von Hichtoffen, rapaz de Osaco que matou a avó e de tarde já havia sido preso, o pediatra que abusava dos rapazes e filmava tudo e depois jogava as fitas de vídeo em cima da lixeira. Ou seja, rastros da evidência de seus crimes. O paranóico não tem esta preocupação. Em sua alienação ele faz porque uma voz manda.

Ainda haverá muita dúvida no ar, mas uma única certeza: na perversão ou na loucura é muito difícil prever o próximo passo em direção à morte. E a justiça? Tarda e falha. Nisto ela tem sido perfeita. A leniência com a progressão de regime, coloca à solta o medo e a insegurança. Não sou especialista na área, mas como cidadão comum sinto-me impotente diante da ineficácia de quem deveria exercer a justiça. Descobrimos a cada dia um abuso, uma molestação, tal e qual o perverso diante daqueles que sabem os meandros da lei e possuem os recursos financeiros adequados contra aqueles que estão marginalizados (pelo saber ou pela pífia situação pecuniária) e, portanto não tem como se defender.

A origem do mal está em cada um de nós. A origem do bem também. O que se espera é que a ética, ética do desejo e da responsabilidade, faça avançar o affectio societatis em nosso meio, em nosso mal-estar da vida quotidiana. Como deter, como barrar o gozo absolutista do Outro? Como deter a Vontade de Gozo do perverso? A psicanálise é um instrumento que faz barreira e não compactua com o gozo. Ela aposta na ética, volto a dizer, na ética do desejo. Do um a um. A singularidade como aposta de saída contra a tirania do 'dever ser feliz', do 'dever gozar a qualquer preço'.

Os laços simbólicos estão frágeis, quebradiços. É um momento em que a "palavra" quase-nada-significa. Resgatar a dimensão simbólica da palavra é também não se perverter, no sentido lato da palavra perversão que significa errância de caminho.

Mas, insisto. Não há "O caminho". O que existe são caminhos que devem ser trilhados um a um. E, assim, possibilitar o encontro com a ética já que esta emerge (Emerj? sic!) quando surge o outro.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

O estranho homo homini lupus


Homo Homini Lupus, Bernard Lorjou (1908-1986)

Unheimlich foi a palavra usada por Freud para dizer sobre o estranho.
Estranho é um sentimento de atopia em relação à si mesmo. Angústia é um afeto (que não engana) que comprime os espaços de saída tornando a vida enclausurada num quarto como no conto O corvo de Edgar Alan Poe. O que um dia foi familiar retorna como estranho.
Estamos vivendo tempos difíceis. O mundo que se quer feliz é meramente uma ilusão de efeitos passageiros, quase que como relâmpagos numa noite chuvosa. Não é um relato sombrio. Ser realista é constatar fatos.
Ainda há pouco constatei na minha cidade (Niterói) devastada em seu orgulho de ser a quarta cidade em qualidade de vida do país, ser assolada pela força da natureza que arrastou vidas. Freud dizia que o sofrimento do homem provinha de três direções: 1) O poder superior da natureza; 2)A fragilidade de nossos corpos; e 3) A maldade do homem contra outros homens. E cita Plauto: Homo homini lupus: o homem é o lobo do homem. Diante do medo, do estranho sentimento de se sentir estrangeiro em sua própria cidade. Diante da insuficiência em ser. Diante da fragilidade de nossos corpos e do poder superior da natureza, surge no meio do caos a maldade do homem contra outros homens. Pânico, correria, lojas fechando, pessoas chorando no meio da rua, helicóptero da polícia, camburões da polícia para conter um arrastão que se alastrou pela cidade...Arastão? Sim. Um arrastão de boatos. Tudo não passou de boatos de pessoas que queriam disseminar pânico a uma população já alarmada e sofrida. Desvio de atenção para o que ainda está por vir? Desvio de atenção para o pior?
Lacan disse certa vez que não é impossível que isso não piore. Ou seja, quando uma pessoa acha que já sofreu o bastante e que ela sempre foi "boa" para a humanidade, não haveria o que acontecer de mal a ela. Ela acha que não merecia isso. Não o fez por merecer. Mas acontece. Então ela se sente injustiçada achando que o mundo conspira só contra ela. Esta estranheza diante do mundo faz com que as pessoas queiram que o mundo caiba dentro do mundo delas e quando isso não acontece ( e nunca acontece) elas se angustiam diante da maldade do homem. Num recente filme de Francis Ford Copolla (A ilha do medo), Leonardo di Capri, o protagonista, se pergunta ao final do filme o que seria pior: viver como um monstro ou morrer como um homem bom?
O mal-estar na civilização está em nossas veias. Nós não somos apenas frutos podres do mal. Não. Estamos bem vivos, sadios e, mesmo assim, o praticamos.
Qual a saída?
O contrário da maldade não é a bondade, como poderiam pensar. O Bem, por existir, nunca nos livrou do sofrimento. Muito pelo contrário.
Então não seria o caso de pensarmos que a oposição ao mal seria a ética? O que você acha?

segunda-feira, 1 de março de 2010

Sobre o ensino e a transmissão da psicanálise


"A fala com efeito, é um dom de linguagem, e a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo." J. Lacan - Escritos
"É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos é que começamos a saber." Clarice Lispector - Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

Em psicanálise você não estuda e aprende. Em psicanálise você estuda, pensa, questiona e transmite. E sua quota de quase-saber vem daí. Daquilo que você ensinando, transmite a partir de um saber não sabido. O inconsciente é estabelecido não só como tendo uma estrutura de ficção, mas de uma linguagem que não se diz-toda: o real. Lacan em seu seminário sobre a angústia, chama de sintoma aquilo que vem do real. Portanto, há algo de inominável no real e, também, há algo de inominável no sintoma. Como se no próprio sintoma houve, por analogia ao sonho, também um umbigo. O real não se diz. Mas se transmite a partir dele. Então, como isso se operacionaliza? É o próprio Lacan quem nos orienta logo no início do seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (livro11) que é preciso tratar o real pelo simbólico (p.14). Pois é falando que a cadeia de significantes se articula em torno do vazio. É através dos intervalos da fala (É a regra técnica fundamental de Freud), suas reticências, seus hiatos que o sujeito pode dizer mais-além das aparências inibitórias do imaginário.
Há alguns anos constato a voracidade das terapias que prometem uma espécie da salvo conduto contra a neurose ou contra a loucura. São terapias centradas no ganho rápido, fácil e que obedecem à nova lei do mercado: a globalização da saúde mental. Algo que, com fina ironia, Machado de Assis escreveu em "O alienista". As terapias comportamentais são uma espécie de mortificação do pensamento. Não é à toa que me refiro ao alienista, já que promovem uma alienação do sujeito e sua faculdade de refletir, questionar. A vida hoje é uma consequência desenfreada de atos sem pensamento, como se fôssemos autômatos. Este modo de agir tem levado os sujeitos a posicionamentos perversos na vida coletiva. O ato sem pensar refere-se a uma razão cínica: o sujeito sabe muito bem o que ele está fazendo, mas mesmo assim continua fazendo. É um sujeito patológico que não quer se responsabilizar pelos seus atos. E quando um sujeito não se responsabiliza um Outro responde em seu lugar. Em nossa constituição o louco, a criança e o índio são garantidos com a prerrogativa de não precisarem responder pelos seus atos. Mas, e quando o sujeito comum, com sua neurose comum, possui um empuxo ao ato e pratica deliberadamente sem que pense nas consequências? Querer terapeuticamente apenas um ato sem pensamento, simplesmente como um reflexo condicionado (pelo Outro), é manter o sujeito nesta alienação. É criar a existência de sujeitos-googles. Sujeitos que apenas sabem muito bem apertar um botão e fazer emergir do outro lado, sem um mínimo de esforço do pensamento, milhares de informações sem nenhuma formação. Na verdade há que se esquecer de algo, como diz Clarice, um não-saber para que se possa começar a saber. E não tentar locupletar o eu com um expansionismo galáctico de gadgets que visem saciar a sede alienante e consumista em se querer todo.
A psicanálise ao colocar um ponto de basta diante do gozo fundamentalista do Outro, não é que pretenda querer ir contra a globalização, mas com isso permitir que o sujeito saiba ao menos de seus limites. Saber de seus limites é criar condições de possibilidades a respeito de seu desejo.
Se a psicanálise acentua a questão da angústia não-sem o desejo do Outro, é porque ela aposta que um sujeito do inconsciente possa advir e, com isso, uma outra formação poder surgir: as formações do inconsciente. Formações rateadas, não calculadas, amealhadas pelos atos falhos, inconclusas nas vacilações e nas atemporalizações da precariedade da fala. Mas, isto é o sujeito! Isto é o sujeito em sua diferença radical em seu desejo. Isto é o sujeito em sua diferença subjetiva e não um sujeito mortificado pela uniformidade globalizante. O sujeito da fala é o sujeito que, através do seu desejo possa bem-dizer sobre sua vida. O estilo próprio de cada um, que Lacan tanto preconizava, é apenas o que cada um, a seu modo, com sua travessia e percurso de análise pode transmitir de seu inconsciente para um outro. Por isso a transmissão da psicanálise é única, é um a um, um por um. Não há a possibilidade da massificação reprodutiva. Quem assim o faz, desertifica-se em seu afastamento radical do ensino de Freud e Lacan.
"O que é ensinar, quando se trata justamente de ensinar o que há por ensinar não apenas a quem não sabe, mas a quem não pode saber?" (Lacan, A angústia, livro 10 - p.26). O saber, não é qualquer saber, mas um saber que é constituído num trabalho de elaboração da análise.
Então, fica a questão: é possível transmitir, ensinar a psicanálise àquele que não passou por uma análise? Em outros termos: é possível uma psicanálise apenas teórica? Que alcance ela teria?