sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A pulsão barroca

barroco mineiro       Iole de Freitas

A Pulsão Barroca[1]



Carlos Eduardo Leal
Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica PUC/RJ

(...)o exame das fantasias que encontramos nos sonhos e em certos impulsos permite afirmar que elas não se relacionam com nenhum corpo real, mas com um manequim heteróclito, uma boneca barroca, um troféu de membros em que convém reconhecer o objeto narcísico cuja gênese evocamos mais acima.           J. Lacan - Os Complexos Familiares

A topologia freudiana para mim tem o nome de pulsão. Assim eu poderia definir a pulsão e o barroco o que por si só já seria uma conclusão. Mas vamos às reviravoltas que o texto[2] de Irineide Santarém André Heriques me inspirou como fonte de retorno a Freud e Lacan.
Articular a pulsão ao barroco pela via da Mascarada Feminina é poder falar de algo que trans-borda. Uma borda que retira seu gozo exatamente ali no ponto mesmo no qual ela permite seus desdobramentos. ‘Mulher é desdobrável. Eu sou’, nos diz Adélia Prado.
Esta idéia da torção topológica e pulsional está numa citação que Irineide faz da artista plástica Iole de Freitas quando esta diz que “o que a interessa no mineiro barroco é a idéia de transbordamento. De um  movimento contínuo impulsionando a forma e seus desdobramentos compulsivos, um dobrar-se sobre si mesmo[3].  Aí está toda a definição de pulsão: transbordamento, movimento contínuo, a forma (corpo-Quelle), desdobramentos compulsivos, que podemos articular com a compulsão à repetição – pulsão de morte – e o dobrar-se sobre si mesmo como sendo o movimento de retorno da pulsão sobre si mesma que indica o percurso circular da pulsão. A autora cita Lacan ao final da p. 64: “O barroco é a regulação da alma pela escopia corporal[4]. Se a pulsão é barroca, podemos desdobrar esta afirmação lacaniana para dizer que: a pulsão é a regulação do movimento do corpo através da representação da instabilidade do objeto. É a instabilidade do objeto que torna a pulsão barroca, parcial, sempre por vir. A pulsão por vir é a hipótese clínica para pensarmos o sujeito do inconsciente, este que ao se transbordar para além do dito, faz ratear suas certezas e propicia o emergir dos contornos por dizer. Em relação ao que falta, a pulsão vem barroca-mente reclamar sua satisfação. Reclama provocando volteios, enlaces e laços que ora sufocam e noutras ocasiões, pela sua extrema frouxidão se desfazem sem a menor cerimônia.
A pulsão, principalmente naquilo que há nela de gozo, de gozo-a-mais, é uma tentativa de capturar e contornar o vazio do objeto a, tal como na experiência do barroco.
A pulsão é barroca e é por aí que a mascarada feminina se instaura. Por detrás da máscara não há nada, só o vazio. Só que este vazio, este nada, não é o nada heideggeriano quando este fala sobre a angústia.
Na angústia - nós dizemos - ‘ a gente se sente estranho’. O que suscita tal estranheza e quem é por ela afetado? (...) Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém - na fuga do ente - este ‘nenhum’. A angústia manifesta o nada.[5]
 Este nada, este vazio é, como Lacan o contabiliza, um não sem um objeto, o objeto a, que tem a função de estar ali e ao mesmo tempo em lugar algum, de se fazer presente pela sua ausência, de se fazer objeto de fascínio ao mesmo tempo que encobre – tal como no feitiço/fetiche – o horror da castração. Objeto “êxtimo”, que por estar dentro e fora, ou dentro desde fora, torna-se “barrocluído” em sua função. Estranho objeto, unheimlich, diria Freud, sobre o qual a pulsão tenta fazer seu contorno para obter do retorno deste enlace a sua satisfação. Quanto mais a pulsão tenta capturá-lo, menos ali ele está. Quanto mais a pulsão dele se aproxima, tal como no olhar de Orfeu sobre Eurídice na volta do Hades, mais o objeto se desvanece em sua função, como que a tentar no último suspiro suplicar: ‘Não era bem este! Não era bem este’!
Assim, Sor Juana Inés de La Cruz nos indica o caminho pela via da poesia:

Yo no puedo tenerte ni dejarte,
ni sé por qué, al dejarte o al tenerte,
se encuentra un no sé qué para quererte
y muchos sí sé qué para olvidarte..
Pues ni queres dejarme ni enmendarte,
yo templaré mi corazón de suerte
que la mitad se incline a aborrecerte
aunque la otra mitad se incline a amarte.[6]    


Dualidade barroca, tendência ao pulsional: amor e morte, encontro e despedida, voyeurismo e escopofilia, sadismo e masoquismo. Retomo Lacan: “o barroco é a regulação da alma pela escopia corporal”. Objeto retorcido, amado e furado.  É ‘um furo’ amar o objeto embora o fascínio exercido por ele costume entrar pela mesma janelinha que escorrem e se debruçam os olhos da alma. Aí há, costumam dizer os poetas, pura perda, desperdício de horizontes que jamais se alcançam, improbidade dos céus que jamais arrefecem para ao menos um toque de mãos trêmulas e fugidias. Barroco é o espaço in-existente entre o horizonte e o céu, espaço impossível de se capturar mas que se descortina bem defronte do cair da tarde dos nossos olhos.
É importante verificar”, nos diz Irineide, “que estas fases do desenvolvimento não acontecem uma após a outra, mas que se entrelaçam[7] podendo acontecer regressões de fases anteriores[8].  Podemos ver neste ‘entrelaçamento pulsional’, a idéia mesma de se cobrir, de se disfarçar para se proteger tal como faz a analisanda de Joan Rivière.
Se a mascarada, como diz Lacan, funciona não no domínio imaginário, mas do simbólico, será o indizível do simbólico, o limite último da palavra e do irrepresentável que anuncia lá desde onde nada se espera, o retorno do real como já sendo o desdobramento do transbordamento? Então, ali onde a palavra já não diz mais nada, a máscara vem tamponar a falta do significante na mulher.
Em relação ao aforismo lacaniano de que ‘A Mulher não existe’, podemos pensar que é lá na tentativa impossível de apreensão do último termo sobre a feminilidade, que o barroco vem fazer suas voltas, seus rococós, seus volteios, entrelaçamentos e transbordamentos. Quando a palavra já não mais exprime A Verdade, torna-se aí neste ponto de reviramento, não-toda. Daí se poder dizer também da parcialidade da pulsão. Podemos então estabelecermos esta equivalência:

                             VERDADE             PULSÃO (BARROCA)
                             NÃO-TODA                      PARCIAL

Portanto, no ponto onde a pulsão encontra satisfação é também o ponto de encontro com a verdade em sua dimensão de parcialidade, não-toda.
A função da fala em relação ao campo da linguagem abre um espaço de re-criação, de re-fundação da alíngua em sua dimensão de verdade topológica e inconsciente. Assim, Lacan nos diz que
a linguagem não é imaterial. Ela é corpo sutil, mas é corpo. As palavras são tomadas em todas as imagens corporais que cativam o sujeito; elas podem engravidar a histérica, identificar-se ao objeto do penis-neid, representar o fluxo da ambição uretral, ou o excremento retido do gozo avarento. Hieróglifos da histeria, brasões da fobia, labirintos da zwangsneurose - encantos da impotência, enigma da inibição, oráculos da angústia - armas falantes do caráter, sinetes da autopunição, disfarces da perversão.[9]
 E mais adiante ele continua: “é na versão do texto que o importante começa, o importante do qual Freud nos diz que ele é dado na elaboração do sonho, isto é, em sua retórica”[10]. E aí nos defrontamos com o barroco da linguagem:
elipse e pleonasmo, hipérbalo ou silepse, regressão, repetição, aposição, tais os deslocamentos sintáticos, metáfora, catacrese, antonomásia, alegoria, metonímia e sinédoque, as condições semânticas, onde Freud nos ensinou a ler as intenções ostentatórias ou demonstrativas ou persuasivas, retorsivas ou sedutoras, com que o sujeito modula seu discurso onírico.[11]
Há algo no inconsciente que é barroco. O inconsciente é barro-a-ser elevado à categoria de Das Ding. O inconsciente é não linear, não retilíneo, ele é curvilíneo, topológico, rébus – fonograma dos sonhos – rebuscado, buscado novamente e elevado à categoria de “algo-a-mais”, um gozo-a-mais; rebuscado. Rébus  buscado, rebuscado, isso é o barroco. Rebuscado e jamais encontrado mas para todo o sempre buscado de novo, wiederholungswang – compulsão à repetição do que está para além da máscara, mascarada: mãe/mulher/artista/mística/poeta/mulher/feminina/a Outra/êxtase/barroca.
Um texto barroco: que não se fecha, ao contrário, que se abre ao novo, sobre si mesmo, feminino, e ao Outro, transbordante. Movimento dialético de pura retorsão, reviramento e assombro criativo com
as bordas e as luzes
o claro e o escuro
o possível e o necessário
a poesia e o mar
o cinema e o olhar
o infinito e o translúcido
o translouco e o infinitivamente pouco
a escrita e os sons
a arte e seus transbordamentos
a leitura e seus cheiros
a ruptura e suas beiras
a complacência e o intolerável
a mulher e a mascarada
o barroco e o mais nada.


[1] Este texto surgiu a partir da minha intervenção como examinador da banca da tese de mestrado em Psicologia/ Psicanálise de Irineide Santarém André Henriques, sob orientação de Maria Clara Queiroz Corrêa no CES/JF. Devo, portanto, a ela as reviravoltas barrocas da escrita, bem como a Denise Maurano que me incentivou a publicar o que de minha intervenção resultou.
[2] Henriques, I.S.A. O Barroco como uma das Expressões da Mascarada Feminina, JF,, Dissertação de Mestrado, CES/JF/MG, 2004, Inédito.
Parte deste texto encontra-se publicado em Psicanálise&Barroco em Revista, ano 2, n.1.
www.psicanaliseebarroco.pro.br
[3] PRADO, Adélia, in Op. Cit. p.41.
[4] LACAN, J., in Op. Cit., p`64.
[5] Heidegger, M.  Que é metafísica? Coleção Os Pensadores. Abril Cultural. S.P. 1983. p. 39. Sobre a questão da angústia em Heidegger, recomendo principalmente o sexto capítulo, parágrafo 40: “A disposição fundamental da angústia como abertura privilegiada da pre-sença”,  em Ser e Tempo. Parte I. Vozes Editora. Petrópolis, 1986. p. 247 e seguintes.
[6] DE LA CRUZ, Juana Inés. Lírica Personal. Obras Completas. Fondo de Cultura Economica. México. 1988.
[7] Grifo meu.
[8] HENRIQUES, I.S.A. Op. Cit. p. 8.
[9] LACAN, J. Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, in, Escritos. Campo Freudiano do Brasil, Jorge Zahar Editor. RJ. 1998.
[10] Op. Cit.
[11]  Op. Cit.  

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