sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A pulsão barroca

barroco mineiro       Iole de Freitas

A Pulsão Barroca[1]



Carlos Eduardo Leal
Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica PUC/RJ

(...)o exame das fantasias que encontramos nos sonhos e em certos impulsos permite afirmar que elas não se relacionam com nenhum corpo real, mas com um manequim heteróclito, uma boneca barroca, um troféu de membros em que convém reconhecer o objeto narcísico cuja gênese evocamos mais acima.           J. Lacan - Os Complexos Familiares

A topologia freudiana para mim tem o nome de pulsão. Assim eu poderia definir a pulsão e o barroco o que por si só já seria uma conclusão. Mas vamos às reviravoltas que o texto[2] de Irineide Santarém André Heriques me inspirou como fonte de retorno a Freud e Lacan.
Articular a pulsão ao barroco pela via da Mascarada Feminina é poder falar de algo que trans-borda. Uma borda que retira seu gozo exatamente ali no ponto mesmo no qual ela permite seus desdobramentos. ‘Mulher é desdobrável. Eu sou’, nos diz Adélia Prado.
Esta idéia da torção topológica e pulsional está numa citação que Irineide faz da artista plástica Iole de Freitas quando esta diz que “o que a interessa no mineiro barroco é a idéia de transbordamento. De um  movimento contínuo impulsionando a forma e seus desdobramentos compulsivos, um dobrar-se sobre si mesmo[3].  Aí está toda a definição de pulsão: transbordamento, movimento contínuo, a forma (corpo-Quelle), desdobramentos compulsivos, que podemos articular com a compulsão à repetição – pulsão de morte – e o dobrar-se sobre si mesmo como sendo o movimento de retorno da pulsão sobre si mesma que indica o percurso circular da pulsão. A autora cita Lacan ao final da p. 64: “O barroco é a regulação da alma pela escopia corporal[4]. Se a pulsão é barroca, podemos desdobrar esta afirmação lacaniana para dizer que: a pulsão é a regulação do movimento do corpo através da representação da instabilidade do objeto. É a instabilidade do objeto que torna a pulsão barroca, parcial, sempre por vir. A pulsão por vir é a hipótese clínica para pensarmos o sujeito do inconsciente, este que ao se transbordar para além do dito, faz ratear suas certezas e propicia o emergir dos contornos por dizer. Em relação ao que falta, a pulsão vem barroca-mente reclamar sua satisfação. Reclama provocando volteios, enlaces e laços que ora sufocam e noutras ocasiões, pela sua extrema frouxidão se desfazem sem a menor cerimônia.
A pulsão, principalmente naquilo que há nela de gozo, de gozo-a-mais, é uma tentativa de capturar e contornar o vazio do objeto a, tal como na experiência do barroco.
A pulsão é barroca e é por aí que a mascarada feminina se instaura. Por detrás da máscara não há nada, só o vazio. Só que este vazio, este nada, não é o nada heideggeriano quando este fala sobre a angústia.
Na angústia - nós dizemos - ‘ a gente se sente estranho’. O que suscita tal estranheza e quem é por ela afetado? (...) Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém - na fuga do ente - este ‘nenhum’. A angústia manifesta o nada.[5]
 Este nada, este vazio é, como Lacan o contabiliza, um não sem um objeto, o objeto a, que tem a função de estar ali e ao mesmo tempo em lugar algum, de se fazer presente pela sua ausência, de se fazer objeto de fascínio ao mesmo tempo que encobre – tal como no feitiço/fetiche – o horror da castração. Objeto “êxtimo”, que por estar dentro e fora, ou dentro desde fora, torna-se “barrocluído” em sua função. Estranho objeto, unheimlich, diria Freud, sobre o qual a pulsão tenta fazer seu contorno para obter do retorno deste enlace a sua satisfação. Quanto mais a pulsão tenta capturá-lo, menos ali ele está. Quanto mais a pulsão dele se aproxima, tal como no olhar de Orfeu sobre Eurídice na volta do Hades, mais o objeto se desvanece em sua função, como que a tentar no último suspiro suplicar: ‘Não era bem este! Não era bem este’!
Assim, Sor Juana Inés de La Cruz nos indica o caminho pela via da poesia:

Yo no puedo tenerte ni dejarte,
ni sé por qué, al dejarte o al tenerte,
se encuentra un no sé qué para quererte
y muchos sí sé qué para olvidarte..
Pues ni queres dejarme ni enmendarte,
yo templaré mi corazón de suerte
que la mitad se incline a aborrecerte
aunque la otra mitad se incline a amarte.[6]    


Dualidade barroca, tendência ao pulsional: amor e morte, encontro e despedida, voyeurismo e escopofilia, sadismo e masoquismo. Retomo Lacan: “o barroco é a regulação da alma pela escopia corporal”. Objeto retorcido, amado e furado.  É ‘um furo’ amar o objeto embora o fascínio exercido por ele costume entrar pela mesma janelinha que escorrem e se debruçam os olhos da alma. Aí há, costumam dizer os poetas, pura perda, desperdício de horizontes que jamais se alcançam, improbidade dos céus que jamais arrefecem para ao menos um toque de mãos trêmulas e fugidias. Barroco é o espaço in-existente entre o horizonte e o céu, espaço impossível de se capturar mas que se descortina bem defronte do cair da tarde dos nossos olhos.
É importante verificar”, nos diz Irineide, “que estas fases do desenvolvimento não acontecem uma após a outra, mas que se entrelaçam[7] podendo acontecer regressões de fases anteriores[8].  Podemos ver neste ‘entrelaçamento pulsional’, a idéia mesma de se cobrir, de se disfarçar para se proteger tal como faz a analisanda de Joan Rivière.
Se a mascarada, como diz Lacan, funciona não no domínio imaginário, mas do simbólico, será o indizível do simbólico, o limite último da palavra e do irrepresentável que anuncia lá desde onde nada se espera, o retorno do real como já sendo o desdobramento do transbordamento? Então, ali onde a palavra já não diz mais nada, a máscara vem tamponar a falta do significante na mulher.
Em relação ao aforismo lacaniano de que ‘A Mulher não existe’, podemos pensar que é lá na tentativa impossível de apreensão do último termo sobre a feminilidade, que o barroco vem fazer suas voltas, seus rococós, seus volteios, entrelaçamentos e transbordamentos. Quando a palavra já não mais exprime A Verdade, torna-se aí neste ponto de reviramento, não-toda. Daí se poder dizer também da parcialidade da pulsão. Podemos então estabelecermos esta equivalência:

                             VERDADE             PULSÃO (BARROCA)
                             NÃO-TODA                      PARCIAL

Portanto, no ponto onde a pulsão encontra satisfação é também o ponto de encontro com a verdade em sua dimensão de parcialidade, não-toda.
A função da fala em relação ao campo da linguagem abre um espaço de re-criação, de re-fundação da alíngua em sua dimensão de verdade topológica e inconsciente. Assim, Lacan nos diz que
a linguagem não é imaterial. Ela é corpo sutil, mas é corpo. As palavras são tomadas em todas as imagens corporais que cativam o sujeito; elas podem engravidar a histérica, identificar-se ao objeto do penis-neid, representar o fluxo da ambição uretral, ou o excremento retido do gozo avarento. Hieróglifos da histeria, brasões da fobia, labirintos da zwangsneurose - encantos da impotência, enigma da inibição, oráculos da angústia - armas falantes do caráter, sinetes da autopunição, disfarces da perversão.[9]
 E mais adiante ele continua: “é na versão do texto que o importante começa, o importante do qual Freud nos diz que ele é dado na elaboração do sonho, isto é, em sua retórica”[10]. E aí nos defrontamos com o barroco da linguagem:
elipse e pleonasmo, hipérbalo ou silepse, regressão, repetição, aposição, tais os deslocamentos sintáticos, metáfora, catacrese, antonomásia, alegoria, metonímia e sinédoque, as condições semânticas, onde Freud nos ensinou a ler as intenções ostentatórias ou demonstrativas ou persuasivas, retorsivas ou sedutoras, com que o sujeito modula seu discurso onírico.[11]
Há algo no inconsciente que é barroco. O inconsciente é barro-a-ser elevado à categoria de Das Ding. O inconsciente é não linear, não retilíneo, ele é curvilíneo, topológico, rébus – fonograma dos sonhos – rebuscado, buscado novamente e elevado à categoria de “algo-a-mais”, um gozo-a-mais; rebuscado. Rébus  buscado, rebuscado, isso é o barroco. Rebuscado e jamais encontrado mas para todo o sempre buscado de novo, wiederholungswang – compulsão à repetição do que está para além da máscara, mascarada: mãe/mulher/artista/mística/poeta/mulher/feminina/a Outra/êxtase/barroca.
Um texto barroco: que não se fecha, ao contrário, que se abre ao novo, sobre si mesmo, feminino, e ao Outro, transbordante. Movimento dialético de pura retorsão, reviramento e assombro criativo com
as bordas e as luzes
o claro e o escuro
o possível e o necessário
a poesia e o mar
o cinema e o olhar
o infinito e o translúcido
o translouco e o infinitivamente pouco
a escrita e os sons
a arte e seus transbordamentos
a leitura e seus cheiros
a ruptura e suas beiras
a complacência e o intolerável
a mulher e a mascarada
o barroco e o mais nada.


[1] Este texto surgiu a partir da minha intervenção como examinador da banca da tese de mestrado em Psicologia/ Psicanálise de Irineide Santarém André Henriques, sob orientação de Maria Clara Queiroz Corrêa no CES/JF. Devo, portanto, a ela as reviravoltas barrocas da escrita, bem como a Denise Maurano que me incentivou a publicar o que de minha intervenção resultou.
[2] Henriques, I.S.A. O Barroco como uma das Expressões da Mascarada Feminina, JF,, Dissertação de Mestrado, CES/JF/MG, 2004, Inédito.
Parte deste texto encontra-se publicado em Psicanálise&Barroco em Revista, ano 2, n.1.
www.psicanaliseebarroco.pro.br
[3] PRADO, Adélia, in Op. Cit. p.41.
[4] LACAN, J., in Op. Cit., p`64.
[5] Heidegger, M.  Que é metafísica? Coleção Os Pensadores. Abril Cultural. S.P. 1983. p. 39. Sobre a questão da angústia em Heidegger, recomendo principalmente o sexto capítulo, parágrafo 40: “A disposição fundamental da angústia como abertura privilegiada da pre-sença”,  em Ser e Tempo. Parte I. Vozes Editora. Petrópolis, 1986. p. 247 e seguintes.
[6] DE LA CRUZ, Juana Inés. Lírica Personal. Obras Completas. Fondo de Cultura Economica. México. 1988.
[7] Grifo meu.
[8] HENRIQUES, I.S.A. Op. Cit. p. 8.
[9] LACAN, J. Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise, in, Escritos. Campo Freudiano do Brasil, Jorge Zahar Editor. RJ. 1998.
[10] Op. Cit.
[11]  Op. Cit.  

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Enxurrada de maldade: tragédia sobre a tragédia da Região Serrana


 

A maldade humana parece não conhecer os mais profundos abismos. A ganância mata por outras formas. Mata de maneira mais espúria porque esta poderia ser evitada. A enxurrada de água, lama, paus e pedras que desabou em janeiro sobre a Região Serrana foi por todos os motivos já levantados pela imprensa, inevitáveis. Foi, a dor é profunda e, para quem me acompanha por aqui ou no Facebook, sabe que lá estou há seis meses ajudando como posso. Ainda existem famílias partidas por mortes que ceifaram esperanças. Ainda existem crianças com frio: de agasalho, comida, carinho, afeto, atenção e solidariedade. De uma forma ou de outra todas que tenho conhecimento estão em escolas. Realfabetizam-se para a vida. Reaprendem outras formas de subsistências agarradas que ficaram por liames que fazem o sol aparecer por entre nuvens ameaçadoras. 
Mas o que dizer da nuvem da maldade humana que troveja sobre a cabeça dos desvalidos? O que dizer do fogo inquieto que consome verbas destinadas aos que perderam a vida dentro da vida? 
O gozo absolutista do Outro se envereda pelas entranhas do poder e arranca de seu dicionário a palavra humanidade. Tudo o que resta chama-se devastação, tal como algumas mães fazem com suas filhas, como dizia Lacan. O gozo não serve para nada. Só nos faz sofrer. Pura pulsão de morte. 
Fala-se dos sujeitos como dejeto e é como lixo, escória, resto, rebotalho, que são tratados.
Tudo então se transforma, nas palavras de Hannah Arendt, numa "Banalidade do Mal". 
Leio (ainda estupefato? Por que na minha crença ainda me escandalizo com os escândalos?) na imprensa que as prefeituras de Nova Friburgo e Teresópolis estão sofrendo uma devassa da Polícia Federal e do Ministério Público pelas fraudes nas licitações para obras "emergenciais" da tragédia da Região Serrana. Obras que não saíram do papel enquanto as crianças se abrigam do frio com papel, "papelão". 
"A forma extrema de poder", ensina Arendt, "é todos contra um; a forma extrema de violência é um contra todos".
A violência impetrada por aqueles que deveriam democraticamente nos resguardar dos assaltantes de vida, parecem fazer liquidar esperanças. 
O povo tem fome, dizia Betinho. Constato esta dureza da vida in loco há seis meses, embora saiba que 30 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza no Brasil, isto é, com menos de um dólar por dia. O povo tem fome de justiça. Até quando seremos chamados de preguiçosos ou benevolentes (fechando covardemente os olhos) desde que "a desgraça não chegue perto de mim"?
E você? Você tem fome de quê?   

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O que há de novo na sexualidade infantil?

 

O que há de novo na sexualidade infantil? Detalhes que fazem a maior diferença.
Se o título desta minha intervenção é uma interrogação é porque parto de uma afirmação. Sim, há algo de novo na sexualidade infantil que é decorrente dos dias que se seguem. Embora os detalhes deste "novo" possam parecer sutis, creio que é exatamente por isso que eles me chamam mais a atenção. Foucault dizia que quanto mais invisíveis as barras de um manicômio, pior seria para derrubá-las. O mundo infantil está posto não através de grandes mudanças, mas de imperceptíveis trocas de papéis e a introdução de um mundo virtual que, quem os fez, esqueceu de avisar aos pais da mudança que acarretaria. Além disso, os pais e os educadores parecem estar perdidos, atônitos com o "politicamente correto" e com a noção dura dos direitos (e poucos deveres) que as crianças muito cedo possuem sobre suas vidas. De fato, o "é proibido proibir"  ganhou um status de liberalismo quase sadiano que parece ter encurralado os adultos num beco sem saída. A Mediania, conceito postulado por Aristóteles, como a possibilidade de evitar as faltas e os excessos e, assim, conquistar o Bem Supremo, caiu por terra por não se sustentar em nenhum parâmetro de felicidade.
Ao contrário do que ocorria antigamente na figura de um adulto homem ou mulher, a sexualidade infantil vem sendo continuamente molestada pelo virtual. Isso é o que há de novo e parece estarmos desaparelhados para pensar novas formas de intervenção clínica como possibilidade de barrar a ferocidade do gozo do Outro sobre o infans
O que percebo é um "novo adestramento da pulsão", isto é, um novo tipo de tentativa de adestramento pulsional que funciona como um gozo-a-mais sadiano. Um imperativo de gozo que não se submete a nenhuma Lei. Quem barra a pletora de gozo do Outro internáutico quando são os pais que saúdam a chegada de novos gadgets como modernos mecanismos de controle? "Agora eu posso ligar e saber aonde meus filhos estão". Como saber? Em Portugal eles dizem mais corretamente que nós brasileiros que chamamos os aparelhos de celular e eles de "telemóvel". A rede mundial de computadores virou uma superestrutura dura, inquebrantável que chegou para trazer muitas facilidades do ponto de vista da funcionalidade moderna, mas tenho sérias dúvidas sobre a sua nocividade para as relações interpessoais. Se os sites de relacionamento se proliferaram, as angústias não possuem mais um endereço pessoal, mas eletrônico. O Outro da angústia (que se aloja no coração do ser, ou melhor, de sua falta-a-ser) pode estar na mesma cidade ou num país longínquo. Qual é o endereço para as perguntas: "Pode o outro me amar?" "Pode o outro me perder?" Além disso, tenho escutado pais aflitos dizerem que os filhos não saem mais de casa (não era justo o contrário antigamente?) por que seus filhos ficam o dia inteiro no computador. Pra que sair para o mundo se este vem até eles?
Se até o século XIX, início do XX existia uma forte repressão sobre a sexualidade, a nova ordem mundial baixou a guarda da censura, mas não soube o que fazer com ela. Deixou-a solta sem um novo reagendamento que pudesse ser esclarecedor dos limites. A tentativa deste escrito é ao menos pensar sobre isso, não que eu tenha soluções. Mas quando pensamos juntos alguma luz pode advir.
Então, o que aconteceu foi um duplo evento: a) por um lado tornou-se proibido proibir e, por outro, b) a internet produziu uma invasão de privacidade jamais vista. É exatamente esta invasão de privacidade que tem causado a nova forma de molestação sexual infantil. O que se chama de molestação, pode ser pensado num certo nível como tudo aquilo que vai contra a vontade do outro ou sem o con-sentimento deste. O que acontece é que vivemos num mundo tão veloz que a ferocidade da informação não respeita o tempo de pensar, o ato de refletir. Transpõe barreiras íntimas do crescimento, fronteiras imperceptíveis das fases da sexualidade que são fundamentais para o crescimento de uma criança. 
No lugar da antiga chupeta (produz deformação da arcada dentária), surgiu o mouse (produz o ler...da). 
No lugar do colo materno, fios de uma rede infinita. 
A pulsão escópica ganhou ares de um panóptico. A criança vê tudo (ou quase, mas muito mais do que deveria), e supõe em seu engano infantil, que por "ver tudo", sabe sobre o todo. Já o engano dos adultos é acharem que o "pensamento mágico" está a salvo destas novas modulações da sexualidade. Há um cheiro nefasto de perversão no ar. 
O novo da sexualidade infantil pode ser descrito como pequenos nichos de uma espécie de anorexia social (fobias que as redes "sociais", as superestruturas, tentam suprir) e uma bulimia do consumo (come e vomita o descartável).  
O excesso de demanda (ofertas) acaba por atrapalhar o desejo (esmaga-o) deixando a criança sem vontade para nada que não esteja ao alcance de seu mouse (vamos pedir uma pizza?).
Pais que procuram o canal aberto do diálogo e que incentivem a leitura não evitam a mordida do mundo moderno, mas são ótimos antídotos que estimulam o pensar criticamente e o agir sem ser um mero autômato.
Para concluir: qual o tamanho do HD de sua disponibilidade para seus filhos?

domingo, 5 de junho de 2011

A psicanálise: questões éticas

W. Kandinsky - Cidade Antiga

"A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis" Fernando Pessoa

Vejam que retornamos sempre a Freud, mas com certeza também a Lacan. A psicanálise passa por momentos delicados em relação ao mundo em que vivemos. Deveríamos dizer Polis ou a equação cidadão+autonomia=Polis está elidida de nossas preocupações? Qual o conceito de cidadão? Ou deveríamos nos perguntar sobre o sujeito na sociedade haja vista que as cidades expandiram suas fronteiras para além delas e, por que não, para além de seus países de origem? Assim, o sujeito teria perdido igualmente suas noções de cidadania e ética? Estes ultrapassamentos fronteiriços têm tido como consequência um apagamento das certezas sobre como circunscrever suas ações bem como um incentivo à impunidade pela certeza que o "cidadão do mundo" pode se esconder em qualquer lugar. Sua preocupação parece ser um única: ser localizado a partir de seu ID no computador. A má-fé como uma nova posição da neurose parece apontar para um afrouxamento das relações simbólicas ao mesmo tempo em que estes traços de perversão (na neurose) parecem se acentuar. 
As transgressões ganham terreno pela certeza de impunidade e pelo "apagamento" que outra nova ação de uma outra pessoa irá tornar a sua inócua pelo tempo acelerado entre uma e outra. Um crime de consciência que elimina o seguinte como um efeito cascata devastador. 
Freud, no Mal-Estar na Civilização escreve que nosso sofrimento provém de três direções: 1- O poder superior da natureza (previa com maestria o que estamos vivendo hoje), 2- A fragilidade de nossos corpos e, 3- A luta do homem contra outro homem (Cita Plauto: O homem é o lobo do homem). Destes três assinala que o último é o pior deles, pois o homem deveria procurar o bem e a felicidade, mas mesmo advertido sobre isso, encaminha-se para as guerras, a xenofobia, a intolerância e as práticas fundamentalistas de exclusão do outro.
Devemos nos perguntar o que queremos da vida quando subvertemos valores em prol do lucro rápido, da ganância desmesurada dos políticos e da pobre investida que fazemos na leitura dos grandes clássicos da literatura e na formação educacional e profissional. O próprio Freud dizia que antes dele sempre houve os poetas e romancistas que, se não eram formadores de opinião, ensinavam a olhar o mundo sob a ótica da relatividade. Além do que, escreviam com muito mais propriedade do que ele sobre as paixões, os afetos (angústias) e as relações amorosas. 
Por onde caminhamos? Pra onde caminhamos? É certo que nos movemos entre o passado e o futuro e, nesta hiância, buscamos construir algo que seja uma segurança para nosso caminhar. Mas, o que fazer com esta proliferação de sentidos que obnubila a visão e quase nos impede de seguirmos em nossa ética psicanalítica? Ainda haverá uma ética do desejo? Decerto que sim, mas não podemos mais pensar o desejo sobre a mesma ótica do século passado quando percebemos também que as relações do sujeito com a lei e o gozo subverteram-se de maneira prodigiosa. Afrouxaram-se as leis, perdeu-se o receio do castigo e sobreveio um gozo desenfreado que parece não submeter-se a lei nenhuma. Nem a lei do desejo em relação ao amor, como dizia Lacan. 
Entre o passado e o futuro há o desejo. Entre o desejo e o gozo há o amor. Mas creio que as fronteiras entre estes territórios cederam de vez.
A psicanálise aposta num limite que sua praxis possa fazer sobre o gozo fundamentalista do Outro. A psicanálise aposta que o sujeito possa, através da ética de seu desejo, saber um pouco mais de seus limites (fronteiras éticas) e, assim, caminhar não a salvo propriamente de suas loucuras, mas responsabilizando-se contra uma parceria espúria com a perversão. 

terça-feira, 24 de maio de 2011

A globalização dos afetos


"Só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz." Clarice Lispector.
Nos tempos de hipervalorização dos objetos em detrimento do ser humano, é preciso repensar a função do sujeito na contemporaneidade. Está encardida a palavra que poderia servir para descrever o sujeito. Deteriorada e talvez um pouco rota, desfeita de sua trama: estrutura de linguagem. Não é de hoje que sabemos a importância da função da fala no campo da linguagem. Mas, quem fala hoje? Há uma pletora de palavras, uma espécie de enxame de Significantes Mestres. Hoje todo mundo fala, todo mundo escreve, todo mundo publica. Se não é através de material impresso, então usa-se as mídias e redes sociais. Mas, percebo que muitos falam e não dizem nada. Há um esvaziamento da fala que não alcança sua significação que poderia recolocar o sujeito em sua devida importância no mundo. Mas, repito. O que há é uma supervalorização dos objetos que, por sua prevalência no mundo, ganharam mais status do que os sujeitos. Diria ainda que há é uma tendência a se fazer sujeitos-objeto. Freud, no Mal-Estar na Civilização (1930[1929]), antecipando muito o que vemos hoje, disse que "o homem tornou-se uma espécie de Deus de prótese. Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico; esses órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas dificuldades." Parece que todo cerne da questão reside aí. O homem inventa, cria para si estas próteses diárias que, sem as quais (os gadgets) ele não sabe mais viver, no entanto, as usa mal. O excesso do uso destes objetos cria a expectativa de que eles poderiam suprir tudo. Essa falsa crença gera angústia e frustração.
Da mesma forma que os objetos tornaram-se cada vez mais descartáveis, as pessoas também parecem seguir este mesmo caminho. A deterioração das relações, o uso que se faz delas e o gozo que se extrai do outro, do corpo do outro a qualquer preço, acabaram por também banalizar as relações.
A Banalização do Mal, como escreveu Hannah Arendt, cobra seu preço ao equalizar ações, pensamentos e ideias como se tudo fosse uma coisa só: pasteurização. A morte, sem seu caráter simbólico também torna-se fato corriqueiro. E é justamente a não diferenciação que promove a globalização dos afetos, deixando-os amorfos em suas singularidades e sem tempero em suas subjetividades. Neste mundo moderno feito de promessas e ilusões, parece que se pode liquidar a vida, já que se liquida tudo. Amores líquidos, diria Bauman.
Se os amores estão líquidos, a angústia, não. Ela anda mais viva do que nunca. Viva para mortificar os sujeitos. A angústia é o afeto por excelência. Aquilo que afeta comprimindo o eu do sujeito. Por isso, não engana. Ela é uma certeza de uma posição sem saída. (espaço-tempo diminutos)
Então, qual a saída? Através da fala, com certeza. E a análise é a experiência da fala sobre uma fundo de verdade que é, a princípio, o impossível de falar da angústia. Atravessar este "deserto dos tártaros" é uma aposta diária.
Acho que Clarice sabia disso.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Sobre o transexualismo




O transexualismo não é apenas um desejo pelo mesmo sexo como ocorre no homosexualismo. No homossexualismo, tanto masculino como feminino, a recusa à diferença sexual parece ser uma marca constante. Nunca nenhum paciente homossexual veio ao meu consultório para se queixar de sua opção sexual ou para dizer que queria ser heterossexual. Portanto, não digam que "curam" homossexuais, pois eles não estão em busca deste tipo de normativização. O sofrimento, este sim é sim uma norma do ser humano. Então são como sujeitos abalados por suas questões e angústias que eles recorrem ao analista. Muitos desejam em suas fantasias ter o sexo oposto. "Eu gostaria de ter uma vagina na hora do sexo diz um homossexual masculino." Mas ele não pensa em fazer uma ablação de seu pênis e reconstituí-lo como uma vagina.
Os transexuais não se enquadram nesta categoria. Neles, houve uma ruptura da realidade, tal como na psicose e, portanto, repudiam o que são e querem se transformar no Outro, no caso, em Outra. Na literatura não há muitos casos de mulheres que que querem se transformar em homens. A maioria dos casos são homens que fazem uma ablação peniana e se submetem a uma Cirurgia de Redesignação Sexual, como é designada.
Nestes casos que podemos considerar como uma psicose, a ablação (corte) permite que o sujeito se estabilize diante da realidade e, portanto, não delire. Se na neurose o sujeito é um sujeito da dúvida, na psicose, a certeza é o que dá o tom. Não há dúvida sobre o que ele é. Não há dúvida, inclusive as existenciais. O transexual não aceita ser quem é e quer ser outro. Não há angústia neste ponto. Ele é não-homem e não-mulher. Esta terceira categoria o coloca numa outra cena desabitada pela lógica fálica que rege os não-psicóticos.
Uma fantasia recorrente aos homens é ter relações sexuais com duas mulheres ou com um homem e outra mulher, ou seja, a antiga triangulação descrita por Sófocles e que ajudou Freud a demonstrar as questões edípicas. Pois bem, existem muitos homens que procuram um travesti (principalmente se ainda não fizeram a ablação peniana) com o intuito de realizarem esta fantasia edípica. Para o neurótico, são dois num só o que excita o traço de perversão neles existente. São também raros os casos de mulheres que procuram um travesti para transar.
Quero lembrar que não se trata apenas de retirar o pênis, mas sim de colocar em seu lugar uma vagina (vaginoplastia).
No série "Amor em 4 atos", uma mulher (a atriz Alice Assef) faz o papel de um travesti (quase não se usa no feminino: uma travesti) e encantou a fantasia de muitos. Lembro que muito recentemente na teledramaturgia brasileira não era permitido aparecer nem homossexuais. Este era um assunto tabu para a tv. Hoje, quem aparece para entrar de vez nas cenas novelescas é o travesti. Ainda sem as grandes questões sobre a perversão, mas é oportuna sua saída por detrás dos bastidores para a boca de cena para que a discussão ganhe uma dimensão que nos conduz a (re)pensar estas questões no mundo atual.
Se, psiquicamente, seu lugar é a radicalização do Outro sexo, na televisão pretende-se amenizar/suavizar esta ruptura, 'travestindo-o' com uma dose de androginia (e um olhar feminino) que é outra coisa radicalmente diferente.
Penso também que há uma certa posição melancólica (depressão profunda), uma tristeza constante rivalizada com uma alegria caricata, que compõe o quadro de ruptura da realidade destes sujeitos.
Mas, pergunto: a quem ama o travesti? O que é o amor nesta conjunção não-homem, não-mulher?

Carlos Eduardo Leal
Psicanalista e ecritor