sábado, 15 de dezembro de 2012

Assassinato da esperança





Tirar a vida de uma criança é roubar a esperança de uma nação! 

Massacre e chacina em mais uma escola dos EUA! Por que acontece isso neste país? Por que fazer do lugar de aprendizado, um confinamento para a morte? Qual o ódio e a loucura que estão embutidos nestas pessoas que sentem uma atração fatal pela pulsão de morte e ceifam vidas e mais vidas? 
Será que no pais do Tio Sam, daquele dedo apon
tado dizendo Yes You Can, as pessoas que fracassam em 'ser' passam a odiar o sistema que lhes prometeu a felicidade em abundância do 'ter'?
Fico pensando que foi lá que surgiu a expressão "fundamentalismo religioso" e não em algum país muçulmano como se crê e propaga.
Lembro que no filme (o primeiro) "A fantástica fábrica de chocolate" em que um dos meninos que ganha o papel dourado para visitar a fábrica está vestido de cowboy e um repórter pergunta se a arma em sua cintura era um Colt 45 ao que ele responde irritado: "Claro que não! Meu pai só vai me dar um quando eu tiver doze anos!" A terceira emenda da Constituição Americana dá o direito do porte de arma a partir dos doze anos (acompanhado pelo pai ou responsável) como direito de defesa. Defesa contra quem?
Todos sabemos da paranoia que assola desde sempre o povo americano. Estão sempre sendo invadidos por marcianos, vírus espaciais, alienígenas, serial killers, russos, terroristas... E na arrogância épico-hollywoodiana eles são os responsáveis por salvar o planeta do mal.
Num país de efusivo patriotismo, há de tudo, mas a banalidade do mal (como afirmava Hannah Arendt) precisa ter um fim. E a solução (final? tsc!) não virá de fora para dentro. Será preciso rever, se se quiser evitar outros massacres, não só a revogação das leis que permitem a todos ter armas, mas a conscientização de que o mal está em cada ser humano e ele aponta sua escolha para onde ele quiser.
S. Freud, no Mal-Estar na Civilização, nos diz que nosso sofrimento vem de 3 direções: 1) do poder superior da natureza 2) da fragilidade de nossos corpos e 3) da luta do homem contra seu semelhante. E afirma que das 3 situações a última é a pior e a mais nefasta. E cita o filósofo Plauto: "O homem é o lobo do homem."
Não sejamos ingênuos: a maldade e a tendência à pulsão de morte está em cada um de nós.
Num país que nos deu Cole Porter, Ira e George Gershwin, Jimi Hendrix, Henry David-Thoreau, Mark Twain, Scott Fitzgerald, Philip Roth, cieneastas, atores, atrizes, num país criador de clássicos mitos, por que também produz a escória que transforma esperança em tragédia?
Repito:
Tirar a vida de uma criança é roubar a esperança de uma nação!

Mas é preciso não só olhar o midiático EUA. É preciso olhar para a esquecida África, o massacre em Ruanda e os milhares que morrem assassinados pela fome todos os dias, é preciso olhar para o Oriente Médio e seus intermináveis conflitos, é preciso olhar para a Índia e seus miseráveis de castas inferiores, é preciso olhar para a China e a escravização no trabalho, é preciso olhar para o Brasil e sua corrupção que também mata ao desviar verbas públicas que deveriam estar a serviço da saúde e educação (a lista é interminável), é preciso olhar para cada nação, enfim, é preciso olhar para cada ser humano, é preciso olhar para você e se perguntar: o que você tem feito por você e pelo mundo ao seu redor?

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A Ética do Desejo e a Covardia Moral




A Ética do Desejo e a Covardia Moral


Carlos Eduardo Leal

Resumo

O objetivo deste trabalho é pensar como o sujeito pode se deixar subsumir pelas intempéries da vida que ocasionam a angústia. A culpa como correlato da angústia é o que leva o ser humano a ter, não um comportamento ético nas suas ações, mas sim justo o contrário que é a covardia moral. A angústia do ponto de vista clínico, pode ser um bom balizador para situarmos no mundo moderno, a ética do desejo na vida em comum.


Resumé

Cet article a le but de penser comment le sujet peut se laisser anéanti par les conditions, le plus lourdes, de la vie qui font produire l’ angoisse. La culpe comme correlatif de l’ angoisse, c’ est ce qui méne l’ être humain a avoir, pas une coduite éthique dans ses actions, mais, par contre, elle fait le sujet vivre la lâcheté moral. L’ angoisse, du point de vue clínique, peut être un baliseur de bonne qualité, pour situer dans le monde moderne, l’ éthique du désir dans la vie cotidienne.




                                                                 Tudo o que se procura, será descoberto.
                      
                                                                                                Édipo Rei - Sófocles

Encruzilhada a céu aberto



Na encruzilhada de uma decisão, frente a uma escolha sempre presente, sempre recomeçada, a vacilação do sujeito põe em causa a constelação do seu desejo. Cometa alucinado a cruzar os céus do imaginário aflitivo e pessoal de cada um, o desejo inconsciente deixa como rastro na poeira de sua cauda, a insatisfação pela sua não realização. O brilho fálico do desejo, vislumbrado na negritude do firmamento, impõe ao sujeito uma espécie de obrigatoriedade em deter o que não se captura; o infinito deslizar metonímico deste cometa-desejo.
Em sua laboriosa fantasia o neurótico sonha iludido em realizá-la. O desejo inconsciente irrompe como um clarão que parece profanar o que até então era cegueira provocada pela opacidade da própria vida. Telescópio em punho, alinhado com a aparente previsibilidade do surgimento do desejo, ledo engano pois este surge de onde o sujeito menos espera e, invariavelmente, ele é tomado pelo efeito de surpresa, ou como Freud falou sobre o caso Emma, ´a emoção do susto`.[1] A imprevisibilidade do advento do desejo é correlata à abertura na vida humana da dimensão sexual, que se traduz como uma experiência daquilo que não cessa de não se inscrever: o real traumático.
Alinhado com as esperanças nutridas através das galáxias da linguagem, o sujeito ilude-se ao pensar que poderá sair em sua vida da posição de impossibilidade - como é o caso da neurose obsessiva - ou da posição de insatisfação - como é o caso da histeria - bastando para isto que ele realize e satisfaça o seu desejo. A esperança aqui se traduz em temor pela incerteza diante do futuro. A promessa de felicidade aparece como o sol que surge no horizonte das incertezas depois de uma noite de trevas. Só que na noite, tinha-se muitas estrelas e não se sabia qual seguir. Agora, durante o luzeiro, apenas uma para projetar a esperança porém, com a condição de não olharmos para ela, ou melhor dizendo, para ele, o sol.  Esta parece ser a fonte dos enganos na vida do homem comum. Manter a esperança sobre algo que na verdade ele jamais poderá olhá-la de frente sob a pena da cegueira, tal como Édipo, Creonte e outros que ousaram saber toda a verdade.
Na encruzilhada de uma decisão, atualmente apela-se aos astros com a falsa esperança de evitar o encontro com a tragédia do desejo. No mapa astral, pode-se olhar os astros sem o temor de que sejam por eles cegados. Porém, a verdadeira cegueira advém através do encobrimento da palavra que ao privilegiar o destino, retira do sujeito a responsabilidade sobre o seu desejo. Quando entregamos ao Outro o fardo da nossa causa é bem provável que encontremos o alívio, com um preço a pagar por isto que é o de não termos acesso à verdade.[2] 
O desejo não pode se consumar numa tragédia. A dimensão trágica é quando dele não queremos saber e supomos que poderemos viver nesta insciência. O alerta dado pelo inconsciente tem a serventia para que possamos dele desfrutar e não para que fiquemos atrelados à um usufruto, este gozo de puro sofrimento.
O analista é aquele que vive o presente no passado e traz o passado para o presente. Tal como as estrelas, cujo brilho que nos chega de um passado longínquo atualizado no presente. O céu do analisante é seu inconsciente onde existem alguns buracos negros através dos quais até a luz é puxada para dentro. Dentro desta alegoria espacial, podemos também dizer que a interpretação analítica é um verdadeiro meteoro cuja cauda deixa rastros na vida do sujeito. Ou ainda, que a interpretação é uma estrela cadente que por sua velocidade e clarão impostos, não dá chance ao sujeito de fazer um pedido como se faz popularmente, enfim, de fazer uma demanda.
A interpretação não visa à demanda, mas sim ao desejo. A interpretação faz furo no céu do desejo inconsciente. A interpretação abre um real de espanto onde o sujeito pode ver uma constelação de pensamentos que apesar de serem dele, não se sabia da sua existência. A análise produz dia, luz, clarão radiante onde tudo era noite sombria na vida do analisando.
Mas a análise traz também em seu bojo, a noite e suas sombras quando o brilho excessivo do real acaba por produzir uma cegueira insuportável. A análise produz a sucessão dos dias – travessia - reproduzindo a vida dentro da vida, a morte dentro da morte, mas também a vida dentro da morte e seu reverso, isto é, a morte no interior da vida.
A análise permite a abertura do céu do inconsciente para o próprio analisante. O descortinar de um véu, produz a possibilidade de um percurso nunca antes transcorrido. Percurso difícil onde por vezes parece um céu infinito noutras um dia claro e em outras ocasiões, parece não haver caminho possível  para se trilhar. Deste lugar sem saída, desta posição de desterramento insuportável tal como um fora de casa, fora de seu ethos, surge a dimensão de algo que não engana: a angústia.


A angústia: desespero do mal-estar


O sentimento de culpa nada  mais é do que uma variante topográfica da angústia

                                                     Sigmund Freud - O mal estar na civilização
É essencial domesticar os deuses no engano, na falácia do desejo, e não despertar-lhes angústia
                                                      Jacques Lacan - A angústia

                                                                                                                                                    
Para pensarmos a culpa temos que, a partir deste nosso referencial que é a psicanálise, articular esta noção com a angústia. Com isso estaremos articulando com o desejo do Outro. Esse Outro que na modernidade responde pelo nome de globalização. Mas o que é a globalização?
A globalização é o estagio supremo do imperialismo.
O controle globalizante funciona como um grande Outro que ao enunciar o seu desejo, põe cada sujeito em confronto com a angústia. A angústia está sempre articulada ao desejo enigmático do Outro. Este desejo enigmático do Outro, transforma-se para cada um em gozo, gozo do Outro, numa quota de sofrimento por não ser possível na sociedade moderna, dar conta de tudo aquilo que ela produz para o consumo. Este descalabro entre aquilo que o sujeito deve e aquilo que ele realmente pode, cria um descompasso angustiante nas relações entre as pessoas.
O objeto adquirido pode ser minúsculo ou mesmo insignificante aos olhos mas mesmo assim pode produzir uma revolução interna tal como diz Machado de Assis a respeito do que sofre a alma humana, em seu conto, O espelho. “A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa.”[3]
A globalização pretende, ao apontar as diferenças entre aquilo que não se tem e o que se deveria ter, que todos possam uniformizar-se, e, assim apagar exatamente as diferenças.
Nós psicanalistas sabemos que a tentativa de apagar a diferença tem por finalidade uma evitação do confronto com a castração.
A psicanálise, embora Freud tivesse uma grande admiração por Darwin, não é uma teoria evolucionista. Freud pensa o homem como um ser que existe a partir de suas relações com seus entes mais próximos; avós, pais e filhos. Para além disso, tudo o mais funciona para o sujeito através da maneira pela qual recebe do mundo suas impressões.
A estrutura do complexo de Édipo, e todas as relações humanas daí derivadas, as paixões, os medos, as fobias, as conquistas, as planícies e precipícios do amor, tudo isso pode ser encontrado desde os primeiros registros da escrita do homem. Quer se vá aos manuscritos sacro-religiosos, quer se mergulhe nas tragédias gregas, principalmente aí, podemos encontrar o lastro que dá vida ao mistério da vida.
A psicanálise nasce com a modernidade. A experiência da cura é uma contraexperiência do cogito. A palavra exila o sujeito de si mesmo e a psicanálise pode ser o lugar onde esta experiência se relata, se narra, se formula em seu silêncio. A narrativa través da associação livre, resgata a dignidade da palavra perdida na constelação da vida humana. A palavra, lavra, marca a condição de ser estranho em relação ao que se acbou de proferir. O sujeito para a psicanálise é o sujeito moderno, o sujeito da ciência , como tal, ele deve ser pensado não do ponto de vista evolucionista mas do ponto de vista das suas relações com o Outro. Não do ponto de vista ontológico, porém, ético.
A falta-a-ser aponta para o ser-para-morte, porém é a pulsão de morte que faz com que o sujeito tenha créditos na sua conta bancária da vida. É o excesso de gozo da pulsão de morte que faz com que o sujeito queira aceder à vida sempre em busca da sua felicidade. A satisfação da pulsão equivale, segundo Freud, à felicidade. O gozo ao qual o sujeito está inicialmente atrelado na sua vida, ou seja, esse gozo do Outro, o gozo da mãe, é esvaziado pelo significante quando de sua entrada no campo da linguagem.
O significante do Nome do Pai é aquele que pode realizar essa operação, porém é este mesmo significante que cobra um preço por essa manobra de inscrição do sujeito no mundo das trocas, metafórico, das equivalências, enfim, no mundo simbólico. Como a criança não tem, a priori, nenhuma mercadoria, nenhum valor que possa servir de moeda para pagar esta dívida com relação ao pai, na verdade jamais terá por se tratar de uma dívida simbólica, ela tenta saldar este ônus com seu sintoma.  O sintoma passa a ser a moeda corrente no campo subjetivo onde se inscreve a metáfora paterna. O colorido, muitas vezes nefasto, do sintoma, aparece pincelado nas entrelinhas da fala do neurótico.
A psicanálise é uma prática que ao privilegiar a singularidade de cada um, pode fazer resgatar algo subsumido diante do gozo absolutista do Outro, a angústia e a culpa..
A tentativa globalizante das psicoterapias é de adaptação do sujeito à realidade e é sempre ortopédica. É sempre com o intuito de tentar moldar a instabilidade do objeto da pulsão. A angústia funda o sujeito enquanto sujeito da dúvida, enquanto sujeito da dívida-culpa. Ao fundar o sujeito, a angústia o coloca numa relação diante do mundo na qual ele tem que posicionar-se segundo seu desejo. A angústia dá mostras que diante do mundo o sujeito, mesmo abismando-se, não pode ser indiferente a ele.
Segundo Heidegger, “é a angústia que pela primeira vez abre o mundo como mundo”.[4] Em Ser e Tempo, ele indica que o nexo ontológico entre angústia e temor é ainda obscuro e, por isso, propõe-se a analisá-los. Heidegger define o temor como um ente intramundano que, advindo de determinada região, torna-se, de maneira ameaçadora, cada vez mais próximo. O que é sempre algo intramundano como um ente que se retira,porém, a ameaça é a própria pre-sença. E por pre-sença, entende-se que é o ser-no-mundo. Aquilo, diz Heidegger, com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo. O retorno do mesmo de algo que se retira é o indeterminado da angústia.
Neste ponto podemos estabelecer alguma semelhança entre essa descrição heideggeriana da angústia e o fenômeno do estranho - unheimlich - analisado por Freud.
Neste texto, Freud nos diz que há a produção de uma angústia a partir de um sentimento de estranheza, quando algo que era familiar retorna imprevisivelmente como estranho. Para Heidegger, “aquilo que se teme é sempre um ente intramundano que, advindo de determinada região, torna-se, de maneira ameaçadora, cada vez mais próximo.”[5]
Do ponto de vista do ensino lacaniano, a angústia é não sem objeto. É óbvio que para se falar da angústia, ou melhor, para podermos nomeá-la, faz-se necessária a sua aparição como um evento fenomenológico. Da causa da angústia, temos que na análise, procurar através da construção fantasmática, a etiologia segundo a neurose de cada um. E na procura pela etiologia, que, vale lembrar, é sempre sexual, está a possibilidade do confronto com o objeto a, o objeto causa do desejo. É em relação à esse objeto que a angústia se estrutura.
Ora, se tal como a culpa, a angústia é estrutural, podemos dizer que não há uma análise sem que a angústia não esteja presente. Sua presença implica que haja um confronto com o real da castração.
O infantil, em última instância, refere-se ao encontro inevitável com a castração. A dureza da vida é o encontro traumático com o sexual, a castração. A dureza da vida é quando não há mais nenhum artifício que se possa interpor entre o sujeito e sua realidade. Estes artifícios pretendem aplacar o confronto com aquilo que há de insuportável para a vida. Têm, por assim dizer, uma dimensão-fetiche de desmentir a diferença sexual, de desmentir o furo da falta-a-ser do sujeito. São, portanto, objetos fetiches, fálicos, que pretendem dar um sentimento de poder e força para os que se acham desvalidos de uma razão que os ilumine na escuridão amarga de suas parcas identificações. A denegação da castração que o fetiche vem respaldar tem o intuito de aplacar a dor, o sofrimento pela constatação da diferença sexual. O sujeito busca através destes artifícios, recuperar o tempero das amarras que o sustentam simbolicamente na vida. Embora a vida possa ser confinada apenas sob este aspecto de sua dureza, Freud nos lembra que mesmo assim, é a única que temos. É nosso dever ético cuidar dela da melhor forma possível.
Por outro lado, os artifícios que podem ser interpostos entre o sujeito e a sua realidade, com o intuito de aplacá-la, de torná-la suportável, podem ter um caráter de mascaramento da verdade, ou seja, evidenciam a dimensão do engano e da ilusão.
O desamparo deixa a criança numa situação de desabrigo e faz com que ela saia da condição de mera espectadora da cena fantasmática e se torne coadjuvante desta montagem. Capturado nessa dimensão, sem possibilidades de dar uma significação plausível, o sujeito recalca no inconsciente na espera de dias melhores, mais afortunados, que possam aplacar a angústia do trauma. Ora, o retorno do recalcado não escolhe um momento qualquer. Seu retorno se dá justamente quando o sujeito detestaria de ter uma experiência novamente como aquela vivida da infância. A precisão ingrata do retorno faz eclodir a dimensão do insuportável. E assim, o desejo inconsciente se revela sequioso de se fazer satisfeito, mas por permanecer atrelado a um não saber sobre a verdade que o causa, ele insiste sobre um núcleo traumático e desconhecido para o sujeito. O desconforto desta insistência e, é claro, a sua não realização, acabam por fragilizar a vida humana. O céu da sua vida escurece e a sensação é de que jamais vai haver o amanhã. Depressão?
Para o sujeito há um Outro, insuportável, que o obriga a não só restaurar um estado anterior de coisas, bem como dar conta da satisfação da pulsão. Tarefa impossível já que o desejo do Outro é sempre enigmático e a forma pela qual o sujeito responde ao enigma do desejo do Outro é com a angústia. A angústia constitui-se assim, como a constatação do fracasso do homem, seu grande paradigma em sua infrutífera tentativa de se prevenir contra o desejo do Outro. É desta maneira que a angústia se correlaciona com o desejo do Outro. E é também o caminho usado pelo sujeito para não agir segundo seu desejo, ou seja, abrigar-se na espúria covardia moral. Por isso dizemos que o contrário da ética não é a anti-ética, ou a imoralidade, mas sim a covardia moral. A ética é o julgamento crítico que se faz da moral, das leis, dos costumes e das tradições.
No seminário A angústia, 1962/63, Lacan diz que a angústia é um afeto do sujeito. E o que afeta ao sujeito é o desejo do Outro. Na angústia, é a relação do sujeito ao Outro que encontra-se afetada. A angústia constitui-se como um afeto que não engana porque o desejo do Outro comporta uma dimensão de gozo não dialetizável, abrindo assim a dimensão insuportável da verdade inconsciente, sem enganos, sem máscaras e sem ilusões. Se a angústia não engana, então o quê engana ao neurótico? O que engana é a localização da angústia. O sujeito pensa que onde ela surge é exatamente onde ela se localiza. Puro engano.  Ela se manifesta no corpo mas ela tem sua causa etiológica determinada pela posição fantasmática do sujeito. É no nível da fantasia que a angústia se localiza e não na dimensão fenomenológico-imaginário do eu como ele erroneamente pensa.
A angústia enquanto sinal invade o corpo manifestando-se como: sufocamento, um sentir-se mal, não estar à vontade, sentir-se sem lugar ou fora de lugar, mal-estar, desconforto na vida, desamparo, constatação na fragilidade de uma dependência excessiva, tremores injustificados, calafrios, insônia, fome devoradora, diarreia, vertigem, distúrbios respiratórios, taquicardia, bradicardia, irritabilidade excessiva, distúrbios neuro-vegetativos, etc.
A angústia comprime, esmaga e sufoca, deixando o sujeito sem saída, encurralado, morto de medo. Por isso, a ética do desejo aparece como uma resposta ao impasse da angústia. Se na angústia falta um sentido, uma orientação para a vida, a ética do desejo implica num saber fazer algo sobre a vida.
A manifestação da angústia advém, como já dissemos, através do descortinar do objeto a, que é um objeto causa de desejo e mais de gozar. Então, a angústia dá o seu sinal no lugar do eu ideal, i(a). Na verdade, ela se localiza na fantasia.
O objeto a é  um objeto causa do desejo e plus de gozo. É, em suma, um objeto perdido, jamais reencontrado. Então, é a função do imaginário “i”, que recobre, envelopa e protege - é o parênteses - o objeto a de se manifestar. Recobre com outros objetos necessários  possíveis da vida cotidiana. Qualquer objeto, objeto pulsional  pode estar neste lugar de defesa, anteparo contra angústia.  É neste nível do eu ideal onde a criança pode se sentir olhada pela mãe e, através deste olhar, se reconhecer no olhar dela.
 Porém, há algo neste olhar que escapa, que cai, que não é assimilado, que não se sustenta, que fica como um enigma não decifrado pela criança, que fica como um resto, um nada, que por ser justamente um nada, causa o desejo, surgindo assim a angústia pela impossibilidade de dar uma significação ou capturar este vazio que não se recobre, que é o enigma do desejo do Outro. O objeto a, é portanto, isto, que da relação entre o sujeito e o Outro, cai. É o insuportável. Pertence ao campo do real, do impossível de dizer, enfim, da castração.
A função imaginária do eu ideal trata então de revestir a dura realidade do possível encontro com este objeto impossível, colocando contornos e limites através das identificações imaginárias.  É óbvio que estas identificações imaginárias só terão a sua inscrição neste plano psíquico do eu ideal, se forem legitimadas, ratificadas, ou ainda, nomeadas pelo simbólico.
O campo do Outro é lugar onde surgem as nomeações que irão recobrir o imaginário fazendo com que o corpo ganhe sua significação e, portanto, saia do desamparo. Esta nomeação é o que Freud fala como a erotização de um corpo. A angústia em relação ao desejo do Outro, coloca o sujeito numa certa atopia e alienação do seu próprio desejo pois ele está alienado no campo do Outro. Tal como Hamlet que está sempre na hora do Outro, sempre a procrastinar o que deve ser feito, sempre a evitar o encontro com  verdade.
Lacan concorda com Freud quando este diz que o ego é a sede real da angústia. Em Freud, devemos entender o ich, o eu, como objeto, mas também como sujeito. É no eu, enquanto definido como a projeção da superfície do corpo, onde se dá a manifestação ruidosa da angústia, que põe o sujeito num descompasso, susceptível à tremores, calafrios, taquicardias e tudo o mais que já descrevemos como o que concorre nesta referência fenomenológica. Na angústia, o sujeito fica atordoado pela falta de sentido porque o que ocorre é uma desestabilização no imaginário. Num evento traumático, o eu ideal que teria por função tamponar a emergência do objeto a, sofre um forte abalo e, com isso, há a possibilidade de que o sujeito se confronte com este objeto sem nenhum anteparo, sem nenhuma defesa. Quer dizer, a desestabilização no imaginário põe, de certa forma, o sujeito à céu aberto, desamparado.  O pano de fundo por onde a angústia se instalaria se articularia da seguinte maneira: haveria a ocorrência de uma desestabilização no imaginário, que produziria uma quebra no simbólico, fazendo emergir o real da angústia.
Ora, esta função imaginarizada do i(a), tinha por finalidade instituir uma garantia que impedisse que o sujeito se confrontasse com sua falta. Mas isso já é a constatação da dimensão da falta, apenas encoberta por algum sentido imaginário. A angústia ocorre quando há imaginariamente a possibilidade desta falta vir a faltar. Se isso ocorre, o sujeito tem que se confrontar com seu desejo, que é, no fundo, desejo incestuoso, inscrito em definitivo por ocasião do complexo de castração. Por isso, o sujeito vai em busca de algo, algum sentido, que se interponha entre ele e o mundo que o sobressalta. A pletora de sentidos que o humano vai buscar durante a vida tem a finalidade última de obturar a falta.
O procedimento analítico visa, assim, descortinar para o sujeito a função de engano e ilusão através dos quais muitos destes sentidos que afetam sua vida, foram construídos. Se o homem sempre esteve em busca de um sentido que norteasse sua vida, isto não quer dizer de forma nenhuma que o sentido encontrado é o sentido esperado. Ao contrário, na maioria das vezes, o sentido encontrado acaba sendo constituído por ser aquele que:
1)      por alguma facilidade/comodidade, foi o primeiro que lhe foi possível capturar em sua dimensão imaginária, e assim, acalmar uma certa dose de estranhamento em relação à realidade que o cercava;
2)      foi o que lhe trouxe alívio imediato, ou anestesiou suas dores, respondendo de certa forma, alguns de seus enigmas e inquietações;
3)      enfim, pode ter sido aquele que conseguiu evitar de alguma forma o desprazer mais intenso - o que pode tê-lo feito acreditar que a evitação do desprazer seria homólogo ao sentimento de prazer.                                                 
Esta última forma seria aquela através da qual o sujeito acreditaria ter encontrado um enorme sentido para sua existência ao se propor a evitação justamente da vida. É possível que se viva muito bem, alienado desta maneira. Porém, se algum dia, um evento produzir a retirada desta certeza, todas as suas quotas de referências e garantias sobre a vida desmoronam-se junto com ele, sobrevindo o colapso da angústia. Quando a falta pode faltar, surge a possibilidade da angústia manifestar-se como correlativa à presentificação absoluta do Outro.
Em geral, esta queda em precipício, pode ser o que conduza o sujeito até ao interior de uma análise. A constatação decorrente é a de que, frequentemente, a evitação da vida, já é a morte anunciada. Em consequência disso, o homem na sociedade moderna tem tentado alucinadamente absorver tudo que lhe é oferecido. Pensa iludidamente, que ao fazer assim, consiga viver de um modo mais intenso e feliz. A fúria da avalanche de mercadorias e produtos ofertados cria um enorme descompasso entre o investimento feito e o retorno esperado. Entre o objeto buscado e a satisfação encontrada. Há aí um fosso abissal que separa o ter do ser.
O sujeito se engana ao pensar que se ele tiver ele será. A dimensão do ter é momentânea, às vezes ilusória e sempre passageira. Já a dimensão do ser implica na possibilidade da falta-a-ser, e assim esta condição pode ser o percurso de uma vida. Não uma beata vita, uma vida feliz, mas ao menos uma dolce vita, uma vida, digamos assim para não traduzirmos ao pé da letra, menos amarga, com menos sofrimento neurótico, o que nos dá ainda a possibilidade de saber o que fazer com ela.


 A Ética do Desejo

Deus ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede?
                                                            Epicuro

O antigo ideal estoico primava pela atitude de quem vivia para dominar os afetos, suportar serenamente o sofrimento e se contentar com a virtude como fonte única de felicidade (eudaimonia). Este ideal visava um estado de perfeita harmonia entre o corpo e a alma. O bom caminho, como resposta à vida, deveria ser a consequência natural de uma prática virtuosa que teria por finalidade a evitação dos vícios que seriam, por sua vez, a encarnação definitiva do mal.
Este ideal goza de uma não atitude, de um não comprometimento com aquilo que decididamente o afeto não deixa ocultar: o encontro do homem com a verdade.
O malogro das relações no mundo moderno incide justamente numa espécie de retorno a este ponto. Esta recaída ou se podemos dizer, esta insistência sobre a constante ocultação da verdade tende levar o ser humano a uma dimensão igualmente constante do engano e da ilusão. O mergulho na falácia ilusória moderna prende-se à avalanche caótica de produtos (gadgets) que prometem justamente o que o antigo ideal estóico se dedicava a conseguir: a felicidade.
A luta martirizada pela sobrevivência, a despolitização do cidadão devido à inércia do poder público e aos altos índices de corrupção, assim como a crescente descrença que se contrasta com um religiosismo cada vez mais radical e fundamentalista, parecem ter esvaziado a condição de certa dignidade de vida para os seres humanos.
A banalização do mal é a violência que bate cotidianamente em nossas portas. A violência abole a condição de ser-no-mundo, de habitá-lo, de fazer do mundo seu ethos, sua morada ética. A violência exclui o homem de sua própria casa e sua primeira morada deveria ser o acesso ao seu desejo.
Quando os meios para a existência do homem são insuficientes, quando não lhe são oferecidas oportunidades de escolha - e a ética implica numa possibilidade de poder escolher - talvez então tenha  chegado a hora de pensarmos para estes violentados pelo mundo moderno, numa ética que nos implique a todos sem que para isto nos afastemos de nossas singularidades. Uma ética que possa ser a ética do desejo e que não se abstenha em ir de encontro da covardia moral.
Contra esta atitude invocamos a responsabilidade ética. Uma ética que seria a ética do desejo através da qual não se vive em relação ao que se gostaria que fosse vivido, mas antes, ao que tem que ser vivido sem abrir mão de se conjugar a concretização de se amar aquilo que se deseja e de desejar o que se ama.
O rigor desta posição não se refere à nenhum ideal, mas sim à um saber fazer (savoir faire) que pode não ser o mais cômodo, mas é seguramente, aquele que impede que o sujeito viva alienado em suas parcas ilusões. É uma ética da singularidade. Através da ética do desejo, o ato criativo pode ser a resposta contra o mal-estar da covardia moral, contra as falsas esperanças, as ilusões ou o refúgio nas toxicomanias.
Na encruzilhada de uma decisão, pode não ser muito o que cada um de nós possa fazer individualmente, mas seguramente pode ser um bom começo para exercermos criticamente a faculdade de sempre estarmos disponíveis para repensarmos nossa posição no mundo. O analista não pode se curvar diante do desejo para dele fazer um ícone do seu ideal. A nossa passagem pela vida é meteórica e, às vezes não nos damos a chance da liberdade da escolha: se vamos querer ficar alienados numa covardia moral ou se levantamos os olhos para abraçarmos a causa da nossa ética do desejo.






[1] FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. (1950[1895]) in Obras completas, v.I, parte II, Psicopatologia, Rio de Janeiro: Imago Editora,  1977,  p. 464.
[2] “Digamos que o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso à verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo, o que é propriamente o objeto do sacrifício.” LACAN, Jacques. A ciência e a verdade, in Escritos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998, p. 887.
[3] Assis, Machado de. O espelho, in, Papéis avulsos, Obra Completa, RJ, Nova Aguilar, 1986.
[4] HEIDEGGER, Martin, Ser e tempo, parte I, Petrópolis, Ed. Vozes, 1988,  p. 251.
[5] ibid, op.cit, p. 249.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Algumas questões sobre a depressão: um mal-estar na modernidade


Vincente Van Gogh - 1890

Não se escolhe uma imagem impunemente. Se aqui reproduzo Van Gogh não é só porque o homem sentado em sua cadeira diante de uma lareira (para se aquecer do frio da solidão?) reflete a natureza depressiva: há um certo desespero/desesperança nas mãos sofridas encobrindo os olhos para não enxergar a realidade. 
A transitoriedade da vida, diante da pletora de ofertas que sofre o sujeito, faz com que este não tenha mais um limite definível entre os objetos e as pessoas. Os primeiros são descartáveis e os segundos também. Esta nadificação, este sentimento de tudo ser transitório produz uma escassez de recursos com os quais se pode contar na vida. 
A depressão é um sintoma que acusa uma falha, uma falta e uma perda.
Uma falha porque os sujeitos são compelidos a serem excelentes em tudo e nunca falharem como se tivessem um priapismo psíquico. Um desejo em constante ereção.
Uma falta porque os sujeitos tentam tamponar toda falta existente. É como se fosse uma vergonha deixar de ter algo. Num mundo dos objetos, a falta quer seja de um trabalho, de ter um celular com todos os aplicativos possíveis ou outros gadgets, fazem da pessoa alguém que não é feliz como se a felicidade dependesse de ter e não também do ser. Ser e ter são fundamentais, mas hoje o ter virou prioridade. Aliás, uma característica que leva a depressão é que os objetos ficam sendo prioritários em detrimento das pessoas.
A perda. Muitas depressões são em decorrência de uma perda: no amor, financeira, de uma pessoa querida, de um membro da família. 
A perda de libido é decorrente desta super exigência em ter que ser potente todo o tempo. Fracassar, falhar, faltar ou perder não podem acontecer neste mundo. Esta impiedade contra si próprio leva o sujeito a querer por fim a vida.
A angústia de se sentir sem saída produz inúmeros sintomas: taquicardia, falta de ar, irritabilidade, distúrbios neuro-vegetativos, cefaleias, insônia, medo da morte, pavor noturno, fobias, medo imotivados, tédio, falta de perspectiva, cansaço profundo, enfim, sintomas que vão impossibilitando a pessoa de viver. 
Mas, a depressão já não é, ela própria, uma forma de dizer não à vida? 

Continua...

quinta-feira, 31 de maio de 2012



Pede-se fechar um olho: sobre a vergonha, o erotismo e o pudor

                                                                                             Carlos Eduardo Leal

O homem é o único animal que se ruboriza. Ou que tem razões para isso.
                                                                      Mark Twain


1- O sonho de Freud: vergonha e culpa

Durante a noite anterior aos funerais de seu pai, Freud tem um sonho com um aviso impresso, “placar ou cartaz”, destes que se usa para avisar da ‘proibição de fumar’ no qual aparecia a inscrição:

Pede-se fechar um olho

É o próprio Freud quem comenta: “Eu escolhera o ritual mais simples possível para os funerais, pois conhecia os próprios pontos de vista de meu pai sobre tais cerimônias. Mas alguns outros membros da família não simpatizavam com tal simplicidade puritana e pensaram que cairíamos em desgraça perante os olhos dos que comparecessem aos funerais. Daí uma das versões, ‘pede-se fechar um olho’, isto é, ‘fazer vista grossa’”.[1]  A simplicidade ‘puritana’ de Freud contrasta com o gozo feroz do olhar do Outro sobre seu ato. Seu excesso de simplicidade puritana, paga o preço da vergonha embutida em seu gozo tributário ao pai.
Este pai “simples” que se abaixa para pegar o gorro na lama quando os anti-semitas o descriminam, este pai “simples” que afirma que ‘este menino nunca vai ser ninguém na vida’, este pai “simples” que o leva a escrever no prefácio à segunda edição desta mesma Interpretação dos Sonhos: “Foi minha reação à morte do meu pai – isto é, ao evento mais importante, à perda mais pungente, da vida de um homem”. Este pai “simples” do qual Freud nunca pôde ir além, verdadeiro rochedo da castração. É deste pai que vem a própria recriminação superegóica, para fazermos alusão a outro sonho nada puritano: ‘filho não vês que estou queimando neste teu excesso de simplicidade puritana?’ A constatação em sonho, téssera genuína do inconsciente, de que havia escolhido o ritual mais simples para o pai, o coloca diante do afeto descrito por ele próprio em 1905 nos seus três ensaios sobre a teoria da sexualidade: a vergonha. Cito Freud:
“Estas forças atuam como barragens ao desenvolvimento sexual – repugnância, vergonha e moralidade – devem ser consideradas como precipitados históricos das inibições externas a que a pulsão sexual tem estado sujeita. Podemos observar a forma pela qual, no desenvolvimento dos indivíduos, elas surgem no momento apropriado, como que espontaneamente, quando a educação e a influência externa dão o sinal”.[2]
A vergonha se descortina não só diante do olhar do Outro. Lacan nos ensina que o circuito da pulsão se dá é no seu retorno. É, portanto, no retorno do olhar do outro sobre o próprio Freud que a dimensão da castração mostra o ás que até então estivera escondido sob a manga, revelando que o artífice infantil de se tentar manter protegido fora do alcance do olhar do outro foi descoberto. Talvez Freud quisesse ter dito para si próprio que ‘é proibido proibir’, mas, tarde demais. O inconsciente antecipa o lance por vir e acaba por revelar o indizível. O real do sonho é um umbigo que o religa estranhamente ao pai. 
Freud ao dizer que escolhera o ritual mais simples possível para o funeral do pai, esqueceu de si próprio, esqueceu daquilo que ele foi pioneiro, a investigação sobre o inconsciente. O sonho vem cobrar o seu esquecimento através do pedido de se fechar um olho, ou seja, fazer vista grossa logo para ele que nos ensinou a escutar mais-além do enunciado, uma torpe tentativa de encobrir sua vergonha.
Lacan escreve em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” que “o que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é sua história: (...) página de vergonha que se esquece ou se anula, ou página de glória que constrange.”[3]
A vergonha é um afeto que constrange e o constrangimento toca ao mais profundo da moral sexual e mesmo do erotismo que se tenta manter fora do alcance do olhar do Outro. A vergonha é, antes de tudo, um indicador da culpa, este gozo do qual o sujeito tenta se iludir da sua não existência. A culpa, no dizer do próprio Freud, é uma variante topográfica da angústia, revela o mal-estar do sujeito diante do objeto da sua fantasia. Objeto a que não o engana, ao contrário, o coloca diante de um impossível constrangimento de tentar dizer o impossível. Esta realidade indizível é a vergonha que cora e enrubesce a face outrora oculta do saber não sabido. Relembro a nossa epígrafe que diz que “o homem é o único animal que se ruboriza. Ou que tem razões para isso”.
“Morrer de vergonha é um efeito raramente obtido”. É assim que Lacan inicia a última lição de seu Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise. [4] Mais adiante ele diz que “morrer de vergonha é o único afeto da morte que merece – que merece o quê? – que a merece.”[5] A vergonha é correlata da culpa por ter cometido o pecado do excesso ou da falta. Transforme-se o pecado em desejo e vocês vão ver aonde isso nos leva. Isso nos leva à dimensão (a mansão do dito) da morte.
Esse ‘instante do olhar’ que o afeto da culpa nos encarrega de colocar-nos frente a frente, é o horror diante da morte. Se a vergonha é inibitória, a culpa, como variante topográfica da angústia, paralisa, já que nos coloca na dimensão da relação essencial com o desejo do Outro. Assim, talvez possamos pensar que a vergonha estabelece uma relação com o gozo, enquanto que culpa se articula diretamente ao desejo.
A angústia na sua ‘rede de significantes’ coloca o sujeito diante da perturbação, da vergonha, da comoção, do desassossego, do desnorteamento, do embaraço e, finalmente, do esmagamento. A culpa corrói o último fio do desejo enquanto que a vergonha tece a trama, malha fina onde se cai no gozo do Outro.
Encobrir a vergonha é tentar se proteger da mira do olhar do Outro. Aí há prazer mesclado a uma excitação do proibido. Este mais-além que não cessa de não se escrever é a compulsão a repetição que mergulha o sujeito na dimensão da morte. O morrer de vergonha.
É este olhar panóptico que revela a fantasia mais recôndita do sujeito. Mira escópica que ao revelar a vergonha, desnuda as palavras que até então recobriam o corpo de sua dimensão pulsional. O corpo pulsional, erótico desde sempre, desde quando o sujeito é falado pelo Outro, ganha assim seus contornos, relevos, reentrâncias e saliências. Em qualquer sentido que vocês quiserem dar a estas palavras.
“A fala”, diz Lacan, “com efeito, é um dom de linguagem, e a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é um corpo.” [6] 
Esta assertiva de que a linguagem é um corpo dá o verdadeiro tom do corpo da linguagem enquanto que submetido ao erotismo. As palavras ao fazerem cópula, engravidam para além de qualquer sentido, dando luz às dimensões da vergonha, da repugnância e da moralidade com as quais o sujeito, em sua pujança de fala terá que se haver.
Assim, a expressão, “pede-se fechar um olho”, está num campo fértil. A vergonha sentida por nosso sonhador é apenas uma vã tentativa de esterilizar esta fertilidade que já está, em seu futuro anterior, consumada.



2 – Sobre o erotismo e a “História do olho” 

A obscenidade é tudo aquilo que excita o moralista
                                                   (fragmento clínico)

A “História do olho”[7] é uma novela autobiográfica escrita por Georges Bataille em 1928, quase trinta anos antes de seu clássico ‘O erotismo’, publicado em 1957. O jovem Bataille começa a escrever por sugestão de Adrien Borel, seu psicanalista para que o ajudasse a livrar-se de suas obsessões, ou como ele mesmo diz, “para livrar-me do meu nome”.  Tanto é assim que Bataille nunca assinou seu próprio nome na obra, e nunca reivindicou a autoria de sua obra, preferindo esconder-se sob o pseudônimo de Lord Auch. A explicação para o pseudônimo é o próprio Bataille que diz num fragmento de 1943, intitulado ironicamente W.C. História do olho – “faz referência ao hábito de um dos meus amigos: quando irritado, em vez de dizer “aux chiottes!” [à latrina], ele abreviava, dizendo “aux ch”. Em inglês, Lord significa Deus: Lord Auch é Deus se aliviando”.
Escrito em primeira pessoa, o romance co nta a história do narrador e sua amiga Simone que, recém-saídos da infância parecem ainda habitar o mundo perverso e polimorfo das crianças, para quem nada é proibido. “Suas brincadeiras sexuais”, diz-nos Eliane Robert Moraes, “assemelham-se a travessuras infantis, às quais se entregam com fúria que não conhece obstáculos”. Marcela e os outros adolescentes que se juntam a eles parecem igualmente entregues aos caprichos e extravagâncias que governam as peripécias da dupla, guiadas apenas pelas exigências internas da fantasia. Em suma, como observou Vargas Llosa, os jovens que protagonizam essas cenas “não parecem seres despertos, mas sonâmbulos imersos em uma prisão onírica que lhes dá a ilusão da liberdade”. Em outra ocasião Vargas Llosa escreveu que “ninguém soube imaginar uma felicidade mais variada e intensa”.
Recentemente, o próprio Vargas Llosa escreveu “Travessuras de uma menina má” na qual a travessa Lily, uma “chilena” também irá constantemente trocar de nome, fazendo com que a vida do pacato Ricardo Somocurcio, se transforme numa louca busca pelo prazer mundo afora atrás dela. Já transformada na japonesa Kuriko, Lily diz a Ricardo: “- Você nunca vai viver sossegado comigo, estou avisando. Porque não quero que você se canse de mim, que se acostume comigo. Vamos nos casar para arrumar os papéis, mas nunca serei sua esposa. Quero ser sua amante, sua cachorra, sua puta. Como esta noite. Porque assim vai ficar sempre louquinho por mim. Falava estas coisas me beijando sem trégua e tentando se meter inteira dentro do meu corpo”. (pág. 229)
A palavra sempre, o ‘para todo o sempre’ das relações de amor casamenteiras, parece-nos indicar um deslizamento metonímico até que a morte os separe. Faltou dizer aos párocos de plantão que é exatamente este deslizamento metonímico que os conduz à morte, quer seja pela vergonha, o ‘morrer de vergonha’ ou literalmente como no filme “O império dos sentidos”, no qual o sentido último do prazer desenfreado é gozar até morrer. O prazer absoluto que conduz a morte como imperativo da vontade de gozo sadiana.
Na História do olho, há um mundo soberano ditado pelos adolescentes do qual os adultos não participam. Mesmo quando aparecem, estão sempre à margem dos acontecimentos, cujo sentido freqüentemente lhes escapa. Assim ocorre, por exemplo, com a mãe de Simone, que, ao surpreender a filha quebrando os ovos com o cu, ao lado do seu inseparável companheiro, se limita “a assistir à brincadeira sem dizer palavra”. Mais tarde, essa mesma mulher “de olhos tristes”, “extremamente doce” e de “vida exemplar” testemunha outras travessuras lúbricas dos personagens em absoluto silêncio, desviando o olhar e vagando pela casa como se fosse um fantasma.
Aqui os adultos raramente têm o direito à palavra. O mundo infantil da História do olho é decididamente egoísta e, como tal, fechado em si mesmo. Nesta história não existe interdito que não possa ser transgredido. Aliás, a sensação que se tem é de que nem há interditos.
O deslizamento metonímico do olho ao cu e de novo deste ao olho e, do olho ao ovo, do ovo ao cu e do cu ao olho, faz uma fusão entre os adolescentes e, entre eles e o cosmos, “estranho rombo de esperma astral e de urina celeste cavado na abóbada craniana das constelações”. É como citar santo Agostinho: “Nascemos entre fezes e urinas”.
Na Espanha, após assistirem exaltados de prazer à morte do touro numa tourada, eles vão dar vazão às suas orgias:
“Simone, de pé entre Sir Edmond e mim – sua exaltação semelhante à minha -, recusou-se a sentar depois da ovação. Segurou minha mão sem dizer palavra e me conduziu para um pátio fora da arena onde imperava o cheiro de urina. Agarrei Simone pelo cu enquanto ela tirava meu pau para fora, com um tesão colérico. Entramos assim num banheiro fedido, onde moscas minúsculas maculavam um raio de sol. A jovem se despiu e enfiei meu cacete rosado em sua carne gosmenta e cor de sangue; ele penetrou naquela caverna do amor enquanto eu bolinava o ânus raivosamente: ao mesmo tempo, as revoltas de nossas bocas se misturavam.
O orgasmo do touro não é mais violento do que aquele que nos rasgou mutuamente, quebrando nossos lombos, sem que meu membro recuasse na vulva arrombada e afogada em porra.
As batidas do coração em nossos peitos – ardentes e ávidos de nudez – não sossegavam. Simone, com o cu ainda satisfeito, e eu, de pau duro, voltamos para a primeira fila. Mas, no assento destinado à minha amiga, encontravam-se, sobre um prato, dois colhões nus; aquelas glândulas, do tamanho e da forma de um ovo, eram de uma brancura carminada, salpicada de sangue, análoga à do globo ocular.
Debruçando-me no ouvido de Simone, perguntei o que ela queria:
- Idiota – respondeu -, quero me sentar nua em cima do prato.
(...) Em poucos instantes, estarrecido, vi Simone morder um dos colhões, Granero avançar e apresentar ao touro a capa vermelha; depois Simone, com o sangue subindo à cabeça, num momento de densa obscenidade, desnudar a vulva onde entrou o outro colhão; Granero foi derrubado e acuado contra a cerca, na qual os chifres do touro desfecharam três golpes: um dos chifres atravessou-lhe o olho direito e a cabeça. O clamor aterrorizado da arena coincidiu com o espasmo de Simone. Tendo-se erguido da laje de pedra, cambaleou e caiu, o sol a cegava, ela sangrava pelo nariz. Alguns homens se precipitaram e agarraram Granero.
A multidão que abarrotava a arena estava toda de pé. O olho direito do cadáver, dependurado.”
Tal como O cão andaluz, filme dos catalães Luis Buñuel e Salvador Dali, na qual na primeira cena uma lâmina corta a sangue frio o fascinante olho de uma mulher jovem e bela. Isso será justamente o objeto de admiração insana de um rapaz que, observado por um gatinho deitado e tendo por acaso uma colher de café na mão, tem um desejo súbito de apanhar o olho com ela.  
Aqui a metáfora do “pede-se fechar um olho” está elidida. Qualquer alusão à tentativa de eclipse do olhar do Outro sobre estes sujeitos é obnubilada pela ausência do afeto da vergonha, da culpa atávica ou mesmo qualquer sentimento de angústia. Portanto, a vontade de gozo é um imperativo categórico onde a máxima sadiana eu tenho o direito de gozar de seu corpo impera soberana.

3 - Além da dor – o pudor

Lacan em Kant com Sade, falou da experiência sadiana onde o que se encontra é essa aparente proeminência da categoria da dor. “Adiemos falar de sua mola, para lembrar que a dor, que projeta aqui sua promessa de ignomínia, só faz corroborar a menção expressa que dela faz Kant entre as conotações da experiência moral. Ver-se-á melhor o que ela vale para a experiência sadiana abordando-a pelo que haveria de desconcertante no artifício dos estóicos a seu respeito: o desprezo.” [8]
Aqui Lacan vai definir uma posição sadiana como uma posição crítica original, revolucionária. É por isso que Sade marca um passo, assim como Kant marca um ponto de virada, alguma coisa de revolucionário frente à posição ética tradicional, ilustrada com os estóicos. Frente à dor, os estóicos a neutralizam, desprezam-na.
Vemos isso nos parágrafo seguinte: Imaginemos uma réplica de Epíteto na experiência sadiana: “Vê, tu a quebraste”, diz ele, “apontando para sua perna. Acaso reduzir o gozo à miséria desse efeito em que tropeça sua busca não é transformá-lo em horror?”
Isto é uma alusão a Epíteto, um estóico, um escravo que por protestar algo, tem a perna quebrada por seu mestre. A posição de Epíteto frente ao gozo, é pretender tornar-se o seu próprio mestre – “eu que sou o escravo posso me tornar-me mestre, mestre de meu mestre, desprezando o que fez o poder de meu mestre, quer dizer esse poder de me quebrar a perna sabendo que eu vou sofrer, experimentar a dor.”
A capacidade de provocar a dor é um direito do mestre, desprezar a dor é a possibilidade de escapar dessa relação escravo-mestre é a maneira do escravo tornar-se mestre do mestre.
A ética estóica é uma filosofia que apesar de desprezar a dor, desprezar o prazer, é uma ética que se coloca inteiramente dentro do princípio do prazer, não é além do princípio do prazer. Não é para chegar a um gozo além do prazer e da dor que o estóico mostra essa posição ética. É por considerar que o princípio do prazer como o que constitui uma posição subjetiva ética, é que pode desprezar a dor, ser mais potente que esse princípio. Não podemos dizer que Epíteto goze em ter sua perna quebrada, ele não goza. Ele chega a uma posição de apatia que não pode confundir-se com o gozo.
Continuando com Lacan para chegarmos ao pudor: “O que mostra que o gozo é aquilo pelo qual se modifica a experiência sadiana. Pois ele só projeta monopolizar uma vontade ao já havê-la atravessado para se instalar no mais íntimo do sujeito que ele provoca mais além, ao atingir seu pudor. Pois o pudor é ambiceptivo das conjunturas do ser: entre dois, o despudor de um constitui por si só a violação do pudor do outro”.[9]
“Ambiceptivo quer dizer que o pudor é ligado, se prende, tanto do lado do sujeito quanto do Outro. Ele está duplamente conectado ao sujeito e ao Outro.” Quanto às conjunturas do ser, é a relação com o Outro que faz a conjuntura essencial do ser do sujeito, e que se demonstra na vergonha. Lacan o explicita dizendo que o despudor de um constitui por si só a violação do pudor do outro”.[10]
Este afeto mais íntimo, que como estamos vendo, não pode fazer série ao triunvirato freudiano da vergonha, repugnância e moralidade. No pudor não há somente vergonha do que sou ou do que fiz, mas se o outro ultrapassa os limites do pudor, é o meu pudor que se encontrará, por isso mesmo, atingido. Basta o impudor de um para violar o pudor do outro. Por isso o pudor está além da dor. Na dor isso não é possível, a dor de um não é dor no outro. Pode se sentir dor ao ver o outro sofrer, mas a dor não é ambiceptiva.
Por isso, pede-se fechar um olho para o pudor, embora o Nelson Rodrigues nos alerte de que “o pudor é a mais afrodisíaca das virtudes”.
 


[1] Freud, S. A Interpretação dos sonhos. 1900. ‘o trabalho de deslocamento’, in, cap. VI. A elaboração dos sonhos. Vol.IV. ESB. Imago Editora. Pág. 338.
[2] Freud, S. ‘As perversões em geral’, in, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1905. Nota de rodapé acrescentada em 1915. Vol. VII. ESB. Imago Editora. Pág. 164.
[3] Lacan, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, in, Escritos, Jorge Zahar Editor. RJ. 1998. Pág. 263.
[4] Lacan, J. O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Jorge Zahar Editor. RJ. 1992. Pág. 172.
[5] ______, pág. 172.
[6] Laca, J. Função e campo da linguagem e da fala em psicanálise. op. cit.  pág. 302
[7] Bataille, G. História do Olho. Cosac Naify Editora. São Paulo. 2003. 
[8] Lacan, J. Kant com Sade, in, Escritos. op.cit. pág. 782.
[9] - op.cit. pág. 783
[10] Miller, J-A – Nota sobre a vergonha. Opção Lacaniana n. 38. Nov. 2003.