segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Infância perdida


Agora, oito horas da manhã desta segunda-feira, 07 de dezembro, enquanto acabava de chegar no meu consultório bateram na minha porta. Fui abrir e era uma menina lindinha que devia ter uns 9 anos (talvez menos). Ela estava com medo, apavorada, porque não sabia andar de elevador. Na verdade seu medo era de estar sozinha aqui no oitavo andar de um prédio de salas comerciais e consultórios. Sozinha e sem referências e, por medo, bateu na porta que julgou estar aberta. E estava. Estava pedindo socorro. Não queria estar ali sozinha, desamparada. Minha porta sempre está aberta para acolher o desamparo. "O que eu faço para descer"?, perguntou aflita. "Tenho medo de elevador e não sei 'andar' sozinha". Bem, segundo ela, a mãe a deixou na portaria para ela vir ao dentista (no meu andar) de quem ela mal sabia o nome e que ainda não havia chegado. Eu desci com ela, coloquei-a sentada na portaria e avisei ao porteiro que avisasse quando ele chegasse ou a mãe...etc etc etc Enfim , tomasse CONTA dela. Nossa, mas onde é que nós estamos? Depois da tragédia consumada, e aí? E daí? É a nova sociedade em rede que Jean-Pierre Lebrun, psicanalista francês fala nesta semana nas páginas amarelas da Veja. Não há mais hierarquias. O que resta é um novo modelo a ser inventado, recriado com o que temos hoje em dia e não mais segundo antigos parâmetros.
É preciso não abandonar nossos filhos. É preciso não acharmos que o mundo não tem solução e lavarmos precocemente nossas mãos.
A psicanálise sempre esteve atenta ao desregramento desenfreado dos sujeitos: o gozo a qualquer preço. É preciso por um ponto de basta no gozo. Um ponto não, vários em fução do gozo desenfreado que vivemos..
O filósofo Pascal Bruckner, escreveu A euforia perpétua: ensaio sobre o dever de felicidade (Difel) no qual aponta, do ponto de vista filosófico, o mal-estar que Freud já havia dito em 1930. Bruckner diz que "o projeto de ser feliz depara com três paradoxos. Refere-se a um objeto de tal maneira fluido, que se torna intimidante, por causa da imprecisão. Converte-se em tédio ou apatia tão logo se realiza (no sentido de que a felicidade ideal seria sempre saciada, sempre renascente, evitando a dupla armadilha da frustração e da saciedade). Por fim, disfarça o sofrimento, a ponto de se ver desarmada dele assim que este surge." A infelicidade não é apenas infelicidade, mas o fracasso da felicidade. É o dever de felicidade que ele escreve. Portanto, vergonha para o sujeito não é sucumbir em meio à dor, mas sucumbir em meio ao prazer.
No texto Mal-Estar na Civilização, Freud nos diz que o sofrimento surge de três direções: 1) Do envelhecimento dos nossos corpos (e suas doenças); 2) da força superior da natureza (furacões, nevascas, enchentes. É Freud antecipando nossa catástrofe ambiental de hoje) e, 3) o homem é o lobo do homem (Homo monini lupus). Dos três tipos de sofrimento, Freud constata que o último é o pior de todos, o que mais nos faz sofrer, pois em geral a gente não espera (embora estejamos cansados de saber) ou se previne, contra a maldade de outro humano ser.
A menina apavorada na porta do meu consultório é, ela própria, vítima infeliz do "homem que é o lobo do homem". Seus olhinhos assustados denotavam o temor diante do desconhecido. Ela é a 'bala perdida' do nosso futuro.
Que sua mãe possa verdadeiramente encontrá-la.

8 comentários:

  1. querido, que situação!
    fiquei comovida com a história da menina que tem como único abrigo o seu próprio medo.
    beijos

    ResponderExcluir
  2. como disse caetano, "sejamos o lobo do lobo do homem!" bjo. mari

    ResponderExcluir
  3. Carlos Eduardo
    Coincidências não existem, mas hoje passei pensando e revirando a solidão que tem muito a ver com sermos nós o lobo de nós mesmos...

    Dizem que a felicidade num ser incomoda os outros seres... Será? Começo a pensar que ali tem coisa!!!!!!!!!!!!!! A tal da inveja brota dos lugares mais estapafúrdios. A vida é uma de minhas paixões e aprendi que ser feliz é uma escolha ... Mas hoje minhas escolhas estão com dificuldade de se impor... :-)

    Adorei mais este blog novo!!!

    Beijos
    Anne

    ResponderExcluir
  4. Que coincidência! Na minha infância tb encontrei uma "porta aberta" e dela saiu alguém que me acolheu, que me colocou em algum lugar e pediu que tomassem conta de mim. Me senti a própria menina da história...
    Só uma pergunta: Alguém chegou para buscá-la?
    Mil bjs!

    ResponderExcluir
  5. Que história comovente. Que bom, Carlos Eduardo, por estar de portas abertas para esta menina. Certamente, ela encontrou realmente alguém que a acolheu. Espero que sua mãezinha a tenha amparado depois. Que ela se ampare e seja uma sementeira corajosa... utopia? sonho.
    abçs, renata

    ResponderExcluir
  6. Olha, Carlos (posso tratar-te assim, como aos amigos?), a maneira real como descreves a menina e o seu medo do desconhecido, fez-me pensar que eu também a (o) conheço...

    Pena que poucos se preocupem e olhem apenas para o seu umbigo...

    Fazem falta mais pessoas como tu.

    Abraço,
    António

    ResponderExcluir
  7. António,
    Prezado amigo,
    Obrigado pela solidariedade irmanada nas palavras. Você tem razão: olhar para o outro (e não só para nossos umbigos) deve ser um exercício diário e constante na ética dos nossos dias.
    ...um dia ainda verei tuas telas ao vivo e a cores, e que cores!
    Abraços do lado de cá do Atlântico,
    Carlos

    ResponderExcluir
  8. "Minha porta sempre está aberta para acolher o desamparo."
    É uma das frases mais belas que li nos últimos tempos.

    Que difícil ser mãe nos dias de hoje. Que difícil ser gente nos dias de hoje.

    Por vezes me espanto des estarmos sãos (será?) por esses tempos.

    Muito bom seu texto.
    De verdade.

    - Em 14 de agosto de 2009, escrevi um poema ao psicanalista. Quando tiver tempo passe pelo "batom" para ler.

    bjs
    Rossana

    ResponderExcluir